Por Andrea D’atri e Laura Liff
No primeiro número de Ideas de
Izquierda assinalamos que o neoliberalismo reconfigurou a situação das mulheres
em escala mundial: novos direitos vieram acompanhados de maiores prejuízos,
junto à feminização da pobreza e da força de trabalho precarizada. Hoje, quando
assistimos à emergência de um novo período de crise econômica, social e
política, como fazer com que a “ampliação de direitos” conquistada não
cristalize como estratégia última de integração, senão que se transforme em
ponto de apoio para uma luta radical pela emancipação das mais amplas massas
femininas?
A italiana Carla Lonzi e o
coletivo Rivolta Femminile denunciaram, nos anos ’70, que “a igualdade é uma
tentativa ideológica para subjugar à mulher a níveis mais elevados (...) Para a
mulher, liberar-se não quer dizer aceitar idêntica vida à do homem, que não é
possível viver, mas expressar seu sentido da existência”(1). O feminismo
indicativo que emerge na chamada segunda onda, com a radicalização do fim dos
anos ’60 e princípio dos ’70, com sua política igualitarista – em suas variadas
alas que abarcaram desde tendências liberais até tendências anticapitalistas e
socialistas -, era criticado por propor a assimilação a uma ordem social e
simbólica distinta, partindo do pensamento da diferença sexual e da
materialidade da condição feminina.
A questão de fundo desta
controversa era a incipiente incorporação da agenda feminista na política
pública dos Estados, dos governos e dos organismos financeiros internacionais.
Obtendo reconhecimento a troco de integração, o feminismo havia passado de
questionar as bases do sistema capitalista a legitimar a democracia burguesa
como o único regime no que se pode lograr, paulatinamente, maior equidade de
gênero, através de algumas reformas parciais que não questionem seus
fundamentos. Mas o feminismo da diferença terminou reconceptualizando o gênero,
reduzindo-o a uma categoria essencialista: postulava que a feminidade era
portadora de determinados valores, inferiorizados no discurso hegemônico
masculino que se pretende universal. Este novo feminismo, que surgia – em certa
medida – como uma reação contra a assimilação ao sistema do feminismo da
igualdade, desestimulou a disputa política, recorrendo-se à criação de uma
contracultura baseada em novo valores, surgidos da diferença sexual. E junto
com o rechaço ao feminismo igualitarista, terminou impugnando o projeto de uma
sociedade igualitária, liberada da exploração e da opressão.
Enquanto avança a restauração
conservadora, nem a integração à democracia capitalista do feminismo
igualitarista, nem a resistente contracultura do feminismo da diferença puderam
evitar que se seguisse reproduzindo, e aumentando a escalas globais impensadas,
a violência e a opressão de milhões de mulheres em todo o mundo.
Tempos depois, mulheres lésbicas,
mulheres negras, mulheres dos países do chamado “Terceiro Mundo”, questionaram
esta “celebração” dos valores femininos, que inviabilizava as diferenças
existentes entre as próprias mulheres, estabelecidas como hierarquias
opressivas. Denunciaram que estes supostos valores femininos não eram mais que
a forma universalista, e, portanto, normativa, em que se expressava a
idiossincrasia particular das mulheres brancas, anglo-saxônicas,
heterossexuais, de classe média e de países centrais. A diferença sexual se
desfez, então, em múltiplas e cruzadas diferenças entre as mulheres, abrindo
caminho a variadas identidades nómades e a um sujeito político fragmentário.
Logo, o pós-feminismo foi mais
além. De tantas e singulares identidades, derivou a impossibilidade de
estabilização de toda identidade. Para o pós-feminismo, toda identidade é
normativa e excludente, porque no mesmo ato em que estabelece os limites que
abarcam – enunciando aquilo que define – institui o excluído. O gênero não
constitui uma essência; não é “natural”, nem pode ter pretensões de
classificação universalizante. Os comportamentos teriam um poder constitutivo
sobre nossos corpos; o gênero seria uma “posição” instável, atos de fala, uma performance auto produzida, um enunciado
pré-formativo. Não cumprir com o “livreto” cultural que se nos impõe através da
linguagem, nos privaria dos status de
sujeito, nos excluiria das convenções hegemônicas que o poder institui, nos
desumanizaria, nos transformaria em “o abjeto”. A heterossexualidade normativa
poderia desafiar-se, portanto, desde as múltiplas formas paródicas do gênero e
da sexualidade. As “imitações” do feminino e do masculino encarnadas no transgênero, na travesti, na transexual, transgrediriam as normas e
estereótipos do gênero em seu fracasso ou instabilidade, convertendo-se em
prática política subversiva. Ressignificar o discurso normativo, por meio da
paródia, seria uma forma de política que socavaria a hegemonia e abriria novos
horizontes de significados.
Enquanto o individualismo se
impunha globalmente, da mão das políticas econômicas que empurrava a milhões ao
desemprego, que estabelecia a fragmentação e o deslocamento da classe
trabalhadora, o feminismo foi se distanciando cada vez mais de um projeto de
emancipação coletiva, encerrando-se cada vez mais em um discurso solipsista,
limitando a influenciar a uma elite que exigia seu direito a ser reconhecida em
sua diversidade, tolerada e integrada na cultura do consumo.
A “cumplice oposição” do
pós-feminismo
Se o feminismo da igualdade teve o
mérito de conceituar o gênero como uma categoria social, relacional e vinculada
ao conceito de poder, visibilizando que a situação de opressão das mulheres tem
um caráter histórico e não é a consequência “natural” das diferenças
anatômicas, o feminismo da diferença teve, por sua parte, a qualidade de
resistir à assimilação a um sistema fundado na subordinação, discriminação e
opressão de tudo o que difere do modelo “universal” forjado sob o domínio
patriarcal. E se o feminismo da diferença caiu, facilmente, em um essencialismo
biologicista, as teorias pós-feministas vieram questionar à sexualidade como
uma invariável, voltando a conceber o desejo como algo situado. O mérito, neste
caso, de rechaçar a ideia de que a diferença se transforme em identidade fixa,
imóvel, abre um caminho potente na cultura e na construção de subjetividade,
ainda que, mostra-se limitado ou impotente politicamente para a constituição de
um movimento de luta pela emancipação do conjunto dos que são oprimidos pela
heteronormatividade obrigatória.
Mas nem os graus de igualdade
política conquistados nas democracias capitalistas dissolvem a desigualdade
social, nem os padecimentos compartidos pelo pertencimento à mesma classe
social dos explorados dissolve as desigualdades que geram a opressão das
diferenças. Como imaginar uma igualdade que não equivalha ao reino do idêntico
e uniforme, e uma diferença que não se constitua como identidade e hierarquia?
Longe de tomar uma posição sem ambiguidades
pela igualdade, o marxismo propõe uma leitura materialista e dialética das
diferenças: questiona a abstração metafísica da igualdade formal que aprisiona
as diferenças concretas em um universalismo vazio. Porque, no capitalismo, a
igualdade só pode existir formalmente, sob a força de abstrair os elementos
particulares da existência social. O Estado capitalista consegue esse divórcio
fetichista da política e da economia, oferecendo-nos o resultado de um ser
humano escindido: proprietário ou despossuído, por um lado, ou seja, com diferenças; mas igualmente cidadão, por outro. As teorias pós-modernas, que
pretendem que as diferenças sejam tão igualitariamente reconhecidas em sua
especificidade ao ponto que se dissolvam como categorias identitárias (ou não
tenhamos necessidade delas), referem ao excluído.
Mas ao não levar em conta as
relações de produção capitalistas nas que apoiam estas exclusões, conclui em
uma luta pela “inclusão” que, em vez de subverte-las, termina ajustando-se e
sendo funcional à nova tolerância mercantil da diversidade. Sem assinalar a
inextrincável relação que existe entre o modo de produção capitalista e as
múltiplas fragmentações que coadunam à dominação, ao questionamento radical à
estabilidade das identidades sexuais e da heteronormatividade perdem sua
potencialidade subversiva. Daí que Terry Eagleton definiu o pós-modernismo como
“politicamente opositor [no melhor dos casos], mas economicamente cumplice”(2).
A reivindicação da diferença
enquanto tal ou a mera proclamação da eliminação das identidades binárias em um
mundo onde tais diferenças são motivo fundante de brutais ofensas e injustiças,
termina-se parecendo mais um discurso autocomplacente para uma pequena minoria
ilustrada e progressista que à crítica de um movimento potente e radicalmente
transformador. Pelo contrário, para o marxismo, trata-se da atenção igualitária das diversas necessidades: a única maneira na qual diferença não é
hierarquia e a igualdade, uniformidade, algo que nenhuma “ampliação de
cidadania” outorga pelas democracias capitalistas poderá oferecer (menos ainda
em tempos de crise econômica, social e política como a que estamos
atravessando). Só uma sociedade de livres produtores pode ser uma sociedade
onde a igualdade se fundamente, não no atraso de uma medição despótica que
busque ocultar as diferenças, senão no respeito igualitário das diferenças que
estabelecem os elementos particulares da existência social.
Através dos olhos das mulheres
A crise econômica, social e
política que atravessa o mundo, é o resultado da impotência do capitalismo para
sobreviver senão às custas de maiores penúrias para as massas e maior
degradação e esvaziamento político de seus regimes democráticos. O período da
restauração conservadora, que desembocou nesta nova crise capitalista, deixou
colocado um cenário contraditório: cooptação e integração de amplos setores das
classes médias e de parte classes trabalhadora junto à exclusão – chegando à
mais extrema marginalidade – para as mais amplas massas; fragmentação inusitada
da classe trabalhadora, e ao mesmo tempo, da imposição do assalariamento para
milhões de seres humanos empurrados às grandes urbes e de países inteiros
incorporados ao mercado mundial.
Como assinalamos na primeira parte
deste artigo, pela primeira vez na história da humanidade, este novo período de
crise capitalista encontra uma força de trabalho altamente feminizada e com uma
inserção urbana que supera à força de trabalho feminina no campo (3). Mas
enquanto a situação mundial empurra as mulheres, e aos setores oprimidos, ao desenvolvimento
de seu potencial subversivo – demonstrando em todos e cada um dos momentos
históricos de grandes crises ou cataclismos sociais, econômicos e políticos -,
o feminismo se encontra divorciado das massas, majoritariamente distante da
perspectiva de um projeto emancipatório coletivo.
Recuperar essa perspectiva nos
exige reconhecer que se a classe operária tem o poder (potencial) de jogar ao
vento os propulsores da economia capitalista, essa posição estratégica não é
razão suficiente para revolucionar a ordem dominante, se não conquista e
acaudilha uma aliança com outras classes e setores oprimidos pelo capital,
incluindo a unidade das fileiras proletárias altamente feminizadas. Levantar um
programa para a liberação da mulher é vital para as grandes massas
trabalhadoras, por sua própria composição e pela necessidade de estabelecer uma
aliança com outros setores e camadas sociais empurradas a uma vida miserável,
arruinadas pelo grande capital, mas também condenadas à discriminação e à marginalidade,
a ser “o objeto” para uma cultura dominante que lhes nega o acolhimento.
Frente essa situação, grande parte
das correntes de esquerda não tem feito mais que modelar-se ao status quo das últimas décadas de
restauração conservadora. Partindo de uma visão cética, segundo a qual a
derrota importa pela contra-ofensiva imperialista não poderia ser revertida,
estabeleceu-se, como estratégia a última, a ampliação de direitos na democracia
burguesa. Se as classes dominantes se viram obrigadas a incorporar estas
demandas para desativar a radicalização, cooptar e integrar amplos setores no
regime, estas correntes de esquerda ao invés de considerar estas conquistas
como um ponto de apoio, estabeleceram-na como todo o horizonte último. Seu
programa anticapitalista foi trocado por um programa antineoliberal, ou seja,
com o objetivo mínimo defensivo de limitar os alcances mais pérfidos da
restauração conservadora.
No polo oposto, para outras
correntes de esquerda, desestimular a necessidade de um programa e uma política
pela emancipação feminina que parta dos direitos democráticos conquistados, foi
outra forma de adaptação: por omissão, os “assuntos” de opressão são deixados
nas mãos dos movimentos sociais policlassistas, enquanto que se aprofunda o
corporativismo e o sindicalismo no movimento operário. Em última instância,
abandonar a estratégia de hegemonia proletária, pela via da abstenção sectária.
Pelo contrário, quem aqui
escrevemos, consideramos que uma crítica desferida às misérias que engendra o
capitalismo, também no terreno da subjetividade
e das relações interpessoais, tem que ser parte integral de nossa visão
marxista do mundo, de nosso programa e nossa estratégia na luta por mudar
radicalmente a sociedade de classes. Enquanto acompanhamos todas as lutas por
arrancar do sistema capitalista as melhores condições de vida para milhões de
pessoas submergidas na humilhação mais inimaginável, nosso objetivo é a
conquista de uma sociedade sem Estado, sem classes sociais; uma sociedade
liberada das cadeias da exploração e de todas as formas de opressão que hoje
fazem do ser humano o “lobo” de seus congêneres.
Quem ansiamos a liberação da
humanidade hoje sumida na miséria e na ignominia, não podemos senão nos
posicionar desde o ponto de vista dos setores mais vulneráveis entre os
explorados. Para transformar a vida desde a raiz tem que olha-la através dos
olhos das mulheres, e é desde este ponto de vista, que tentamos retomar o
método do bolchevismo para pensar, inclusive as profundas mudanças sociais que
tiveram lugar no último século e que colocam novos problemas a serem levados em
conta.
Sabemos que o comunismo não surge
da mera ânsia, ainda inclusive quando se trata da ansiedade de uns milhares de
milhões de explorados. É necessário não só desejar outra ordem de coisas, mas
derrotar a ordem existente. Daqui a necessidade de que toda conquista parcial,
hoje obtida nas estreitas margens das democracias degradadas, seja posta em
função desta estratégia última.
É o único antídoto realista contra
a utopia pós-feminista das democracias radicais e da distopia dos
totalitarismos burocráticos com os que a revolução foi traída e convertida em
seu contrário. Nesse caminho, o da luta das massas femininas por sua
emancipação e a crítica marxista enriquecida pelos aportes das correntes
feministas, surgirá um renovado feminismo socialista que ainda espera ver a
luz.
Notas
(1) Manifiesto de Rivolta Femminile,
Roma, julio de 1970.
(2) Terry Eagleton, Las ilusiones del posmodernismo,
Buenos Aires, Paidós, 1998.
(3) Andrea D’Atri y Laura Lif, “La
emancipación de las mujeres en tiempos de crisis mundial”, Ideas de Izquierda 1, Buenos Aires, julio 201