PUBLICADO NA 2ª EDIÇÃO DO LIVRO "A PRECARIZAÇÃO TEM ROSTO DE MULHER
Por Natália Viskov (Coordenadora das edições ISKRA e estudante de Letras - USP) e Ravenna Sanchéz (estudante de Ciências Sociais - USP)
Ao longo do livro "A precarização tem rosto de mulher", buscamos mostrar como a opressão às mulheres, ainda que não surja com o capitalismo, é parte constitutiva do mesmo e é chave para que este sistema siga funcionando como tal. Buscamos também mostrar como há exemplos de lutas de mulheres, sejam a partir de uma luta em seu local de trabalho ou se organizando em seu sindicato, em suas comissões, que podem fazer a diferença em transformar as mulheres, de objetos, a sujeitos de sua vida.
Neste pequeno artigo, queremos discutir, ainda que de maneira incipiente, a violência às mulheres na Índia que tomou as capas de jornais e revistas a partir do estupro coletivo de uma jovem estudante no fim do ano passado. A essa tragédia, veio uma resposta das massas, que, com o impulso das mobilizações políticas internacionais a partir da crise capitalista, saiu às ruas pedindo justiça.
No dia 16 de dezembro de 2012, uma jovem universitária, de 23 anos, estudante de medicina [1], subiu no ônibus com seu amigo. Era um dia comum, quando percebeu que havia apenas seis homens no veículo e que nele estavam querendo fazer um “trajeto distinto”. A estudante foi estuprada durante horas. Seu amigo foi forçado a ver tudo. Ao terminarem, espancaram a moça e seu amigo com uma barra de ferro, e ainda em movimento, jogaram os dois, sem roupa, na rua. A estudante foi parar no hospital com diversos danos cerebrais e falência dos órgãos, até que no dia 28 do mesmo mês, não resistiu e morreu. Essa tragédia aconteceu em Nova Déli, capital da Índia.
Tragédias desse tipo são algo “comum” na Índia. Fazem parte da realidade da maioria das mulheres desse país que, por medo, na maioria das vezes silenciam quando violentadas e abusadas. Mas dessa vez foi diferente: mulheres, mães, pais e crianças resolveram não se calar e saíram às ruas em um dos maiores processos de mobilização que a Índia presenciou nos últimos anos. Foram marchas, barricadas, atos, greves de fome, assembleias estudantis, moções de sindicatos, entrevistas, documentários; tudo isso para dizer basta a essa opressão cotidiana que sofrem as mulheres na Índia.
Depois da notícia do estupro coletivo da estudante, houve uma marcha de mais de duas mil pessoas, pedindo a punição aos estupradores. Uma marcha pacífica, com uma reivindicação muito democrática, mas que foi recebida com muita repressão pela polícia. Houve mais de 100 feridos. Dias depois, houve uma nova marcha, em frente à casa da chefe de governo de Nova Déli, Sheila Dikshit. O governo respondeu com mais repressão e prisões. Foram dias seguidos de atos e confrontos com a polícia.
Também no mesmo mês, no dia 23, uma moça indiana de 19 anos se suicidou. Ela havia sido estuprada por vários homens em um festival em novembro do ano passado e, ao fazer a denúncia, ouviu dos policiais que era culpada pelo estupro e que “fazia por merecer”. Não bastasse isso, ofereceram dinheiro para que ela não levasse a denúncia adiante, e sugeriram que ela se casasse com um de seus estupradores. Tal notícia fez com que os atos crescessem, e a oposição ao governo, para tentar se relocalizar politicamente, começasse a se pronunciar e pressionar para que o governo tomasse providências contra os estupradores.
Esse país não tinha uma mobilização desse tamanho desde meados de 2011, quando ocorreu a luta democrática dos milhares que foram às ruas protestar contra a corrupção e o governo de primeiro- ministro Manmohan Singh. No entanto, existe um salto de qualidade. A crise capitalista internacional, que desde 2008 ameaça a economia de diversos países e que tem como saída – para a burguesia – descarregar sua crise nas costas dos trabalhadores, tem trazido respostas políticas de diversos setores em vários países, e isso deu fôlego ao grito das mulheres indianas contra a opressão. Nos últimos anos, com a crise capitalista, veio a estagnação econômica e a inflação subindo de 4 para 11%, combinado ao fechamento de indústrias importantes e de demissões em massa.
Tais ataques vieram juntos a uma resposta política dos trabalhadores. Uma onda de revoltas e greves operárias tomou conta desse país em 2009. Números oficiais mostram que a quantidade de greves subiu 48% em relação ao ano anterior. Infelizmente, tais greves não foram capazes de passar das reivindicações econômicas para as políticas. Isso porque os sindicatos majoritários nesse país são diretamente ligados ao governo e à patronal, o que traz a necessidade premente dos trabalhadores lutarem por sua independência política nos sindicatos. Tais greves operárias mostram que o processo que se deu na Índia no final de 2012 é fruto de uma revolta social que ultrapassa as demandas democráticas das mulheres, e traz consigo a necessidade de dar uma resposta de conjunto aos ataques que os trabalhadores e a população vêm sofrendo nesse país.
Podemos dizer que estes amplos movimentos democráticos, como a luta contra a corrupção em 2011 e agora a grande mobilização contra a opressão às mulheres, que aparecem como uma continuidade e uma transformação das grandes lutas operárias que ocorreram nos últimos anos (ainda que com um programa limitado), podem significar uma tendência, anunciando os rumos do movimento de massas e do imenso proletariado indiano.
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A história recente da Índia, a despeito do ciclo de crescimento dos últimos anos, não deixa dúvidas de que se trata de um país semicolonial, que, como definia Trotsky, é pressionada ao mesmo tempo pelo imperialismo e por sua própria burguesia débil:
Se a Índia é um componente interno da burguesia britânica, o domínio imperialista do capital britânico não é um componente menor da ordem interna indiana. A questão não pode ser reduzida à mera expulsão de alguns milhares de exploradores estrangeiros. Não se pode separar esses dos opressores internos, e quanto mais se fortaleça a pressão das massas, menor será o desejo dos opressores nacionais de se separaram dos estrangeiros. [2]
Ainda que essa citação seja de 1930, quando a Índia ainda era um país colonial da Inglaterra, e que a burguesia indiana tenha sido “forçada” a expulsar alguns de seus exploradores estrangeiros para conseguir sua independência política em 1947, o fundamental se mantém até hoje. A burguesia indiana governa o país pressionada pelos interesses imperialistas, que hoje passam por uma relação “amigável” entre esse país e os EUA, que buscam avançar em acordos estratégicos com os países asiáticos. No que diz respeito à formação da burguesia indiana, esta esteve sempre apoiada nos traços mais reacionários da opressão imperialista, conservando consigo também os elementos mais atrasados de sua organização social pré-capitalista, questão determinante até os dias atuais.
Um exemplo disso é a vigência do sistema de castas. [3] Ainda que a constituição indiana de 1950 preveja o fim das mesmas e “defenda” que o Estado seja laico e que não deve haver discriminação por castas, esse sistema, que teve sua origem antes mesmo do surgimento do capitalismo, e que se baseia no hinduísmo – religião predominante na Índia – segue sendo um dos principais pilares da organização social desse país. Foge inclusive de um dos discursos da burguesia, de que com o capitalismo existe “mobilidade social”, pois a posição social passa de pai para filho, determinando assim que aquele que nasce em uma casta inferior provavelmente seguirá assim até sua morte, já que só pode haver casamentos entre pessoas da mesma casta. É nas castas superiores que estão as principais dinastias que dirigem o país, e que permitem que mulheres pertencentes a essas castas ocupem cargos importantes de empresas ou políticos, usufruindo de direitos democráticos elementares; enquanto nas castas inferiores as mulheres ocupam os postos de trabalho mais precarizados e muitas vezes são transformadas em objetos sexuais em troca do sustento de suas famílias.
A realidade Indiana é a de um país definido pela ideologia burguesa presente nos veículos de comunicação, dito como um país “emergente”, que cresce e integra o grupo dos BRICs [4] e se trata de um importante pólo nuclear [5] e tecnológico. Não podemos, no entanto, nos enganar em uma falsa oposição entre Oriente e Ocidente, na qual a chegada de elementos sociais e econômicos ocidentais questiona, com sua “modernidade”, a opressão às mulheres. O que verdadeiramente ocorre na Índia não se trata de uma oposição, mas de uma integração entre as formas de opressão típicas da sociedade de castas e a opressão capitalista.
O século XXI assistiu, especialmente nos países nomeados como “emergentes”, destacando Brasil e Índia, o boom dos call centers, que funcionam a partir de um tipo próprio de precarização do trabalho. Não se trata mais de um trabalho braçal, ou para as mulheres, a simples função de reprodução das condições de vida (limpeza, educação etc), mas de que se exija um grau de qualificação um pouco mais elevado para trabalhos de baixíssima remuneração, repetitivos e alienantes, que tem altos índices de assédio moral e suicídio de trabalhadores das centrais de telemarketing, que servem em alguns casos diretamente ao sistema bancário ou à publicidade de grandes monopólios. São empregos que têm em sua maioria mulheres pobres, o que na Índia é algo diretamente ligado às castas ditas inferiores, e que no Brasil se dirige a mulheres, homossexuais e negros, como é o telemarketing, essencialmente apoiado nas divisões da classe trabalhadora, segundo a qual as mulheres têm salários inferiores.
Esse tipo de precarização tecnológica do trabalho vem aliada ao crédito e ao aumento do poder de consumo vigente nos ditos BRICs para criar a ilusão nos trabalhadores de que agora há para eles trabalho intelectual e condições de consumir. Na Índia, especialmente bens tecnológicos, o que, com a chegada da modernidade, se choca com os costumes. Uma mentira essencial nos países que serviram, ao longo dos primeiros anos da crise capitalista, para que os países imperialistas atingidos escoassem sua produção e explorassem as classes trabalhadoras dessas semicolônias a baixos custos, baseados na opressão de classe, gênero ou casta, e na consequente divisão das fileiras dos trabalhadores. Esse crescimento econômico esteve diretamente ligado às diversas privatizações e reformas econômicas que sucederam a partir da década de 1990 [6]. Foi através dessas reformas que esse país passou a ser considerado um dos principais países “emergentes”, e é hoje pertencente aos BRICs. Isso não quer dizer, como apontamos acima, que com a melhora da economia indiana, as massas passaram a ter melhores condições de vida. Seguem como nunca as péssimas condições de subsistência, na qual o crescimento do PIB vem acompanhado de taxas baixíssimas de renda per capita: 1.500 dólares anuais. Quantia ínfima, já que o PIB aumenta cerca de 6% ao ano. A Índia tem uma das taxas mais elevadas do mundo de pessoas vivendo na linha da pobreza, e é constituída por cidades inteiras sem saneamento básico.
Igualdade perante a lei não é ainda igualdade efetiva [7]
A opressão a essas mulheres é gritante. Para a garantia da continuidade de sua casta, as mulheres são obrigadas a se casarem com um homem escolhido por seu pai, o que faz com que os estupros e violência sexuais aconteçam diariamente dentro de casa. O número de infanticídios na Índia é alarmante. São inúmeras as crianças meninas que nascem e são mortas pela própria família, que esconde as provas. A polícia e o governo fazem “vista grossa” e negam que ainda exista esse tipo de prática no país. Isso acontece porque quem paga o dote do casamento são os pais da noiva, já que o noivo “garantirá a segurança” da noiva. Além disso, são inúmeros os abortos forçados que sofrem as mulheres ao descobrirem que terão uma filha e a pressão física e psicológica que sofrem as mulheres para terem meninos na gravidez é brutal. Na Índia, formalmente, as mulheres têm direitos iguais aos homens; o feminicidio é proibido, e o regime não se organiza através de castas. Uma grande mentira. Lênin discutia que a igualdade perante a lei não significava igualdade perante a vida. Isso, na Índia, é escandaloso, já que a constituição desse país não passa de papel molhado.
Segundo dados do Centro Nacional de Registros de Crimes (NCRB), uma mulher é estuprada a cada 19 horas na Índia. Só no ano passado, 80% dos casos de violência registrados no país foram de mulheres. Em 2010 foram mais de 25 mil estupros registrados e mais de 9 mil mortes por conta do dote.
A opressão histórica às mulheres na Índia não passa, no entanto, apenas pela precarização de seu trabalho e a opressão dos costumes; em meados das décadas de 1970 e 1980, sob o governo de Indira Gandhi, uma mulher, o país foi palco de um agressivo controle de natalidade, num cenário econômico de introdução das medidas neoliberais de ataque à classe trabalhadora que marcaram esse período, sob um discurso economicamente neoliberal e politicamente conservador. O que esta governante burguesa aplicava era uma política de esterilizações e vasectomias em massa e de forma compulsória para lidar com o problema de superpopulação da Índia, decorrente de elementos econômicos e culturais e não da ‘’culpa’’ dos trabalhadores indianos. Não bastasse, ainda impunha sanções às famílias com mais de dois filhos: os funcionários públicos chefes de famílias que ultrapassassem o número legal de filhos perdiam seus cargos e os camponeses perdiam o direito a vias de irrigação. Assim como na solução dada pelo atual governo indiano para o problema dos estupros (proposta de toque de recolher para as mulheres), no tempo de Indira Gandhi foram também elas e suas famílias que pagaram pela debilidade da burguesia indiana em lidar com as contradições de seu próprio domínio.
Basta! Diziam as milhares de mulheres e homens que tomaram as ruas de Nova Déli
Todos esses escandalosos casos de opressão cotidiana escancarada, estavam entalados nas gargantas das milhares de mulheres que saíram às ruas ao saberem do caso do estupro coletivo da estudante no dia 16 de dezembro passado e gritaram: Basta! Foram dias e dias de manifestações por justiça.
Houve diversas discussões acerca da violência e opressão às mulheres, desde medidas que endurecessem mais as punições aos estupradores, como passar a tornar o crime de estupro inafiançável, até setores como alguns partidos da oposição do governo defendendo a castração aos estupradores ou a pena de morte. Para tentar se localizar, houve partidos que passaram de porta em porta nas casas e entregaram canivetes para as mulheres se defenderem. Ou seja, mais uma mostra de que a política de defesa das mulheres não passaria pela garantia de que o Estado defendesse a vida dessas mulheres, mas responsabilizando a elas próprias por suas vidas e sua segurança.
Com a pressão das mobilizações, o governo logo julgou e condenou cinco homens [8] que estupraram a jovem de 23 anos, coisa que não se via há anos, pois a média de demora para julgamentos de estupro é de cerca de 3 anos na Índia. A revolta massiva fez com que o governo se pronunciasse, e este foi à rede nacional de televisão anunciar que tomaria medidas severas e que usaria esse caso como “exemplo” para que isso não voltasse a acontecer. Anunciou a contratação de mais policiais femininas, a implementação de mais patrulhas policiais noturnas, e declarou que todos os motoristas de ônibus e seus auxiliares serão submetidos a checagens. Ônibus com janelas escurecidas e cortinas serão tirados de circulação. Além disso, hoje analisam a possibilidade votar um “toque de recolher” para as mulheres no período da noite, uma medida arquirreacionária, pois reforça que a culpa pelos estupros seja atribuída às mulheres, proibindo que essas saiam de suas casas com a ameaça de serem, além de violentadas, presas pela polícia.
Nessas medidas do governo o que se enxerga é claramente uma tentativa de se desviar o necessário foco da revolta após uma história de opressão, divulgando a ideia de que é necessário castrar ou condenar à pena de morte alguns indivíduos. A punição dos estupradores é elementar, mas não é sinônimo de justiça para as mulheres indianas, bem como recolhê-las em casa ou submetê-las ao julgo policial não significa mais do que aumentar a opressão e a vigilância, justamente numa época em que, após tanto tempo silenciosas, se colocaram nas ruas aos milhares contra a opressão.
O anseio dos milhares que saíram às ruas era por justiça, por punição aos estupradores. Nada mais justo. No entanto, os partidos políticos e a burguesia se utilizam de tais anseios para desviar o foco do real problema e perpetuar o status quo do país. A reivindicação de muitos pela pena de morte, castração, ou mesmo prisão perpétua aos estupradores esconde por trás a legitimação de um regime reacionário, que se apóia em uma crença religiosa para perpetuar a opressão às mulheres e à população pobre. A reivindicação justa de punição aos estupradores é uma demanda democrática fundamental. No entanto, a reivindicação da pena de morte, que hoje é baseada em um sentimento de ódio à violência brutal contra as mulheres, pode ser utilizada pela burguesia e seus governos conta a classe trabalhadora. Isso porque, se a pena de morte passa a ser legalizada, quando a classe trabalhadora e a população começarem a se levantar contra a burguesia e seus governos, os mesmos podem utilizar tal pena para reprimir as mobilizações. Assim, as medidas legais justas, como a prisão aos estupradores, é apenas uma parte “imediata” na luta contra a opressão e a violência às mulheres.
Um dos pilares da perpetuação da violência às mulheres é a própria polícia. São inúmeros os casos de denúncias arquivadas, de ameaças às mulheres que tomam coragem de denunciar seus agressores e são violentadas na própria delegacia, ou são abusadas verbalmente ao ouvirem dos policiais que são elas as próprias culpadas pelo estupro, pois “estavam provocando”. Uma das medidas que o governo anunciou foi a contratação de maior policiamento feminino, uma forma de buscar acalmar as mulheres que se veem rodeadas de homens ao irem a uma delegacia. No entanto, o que determina as providências em relação à violência e estupros contra as mulheres não é o sexo do policial, e sim a serviço do que está essa instituição do regime.
A polícia serve para garantir a ordem dentro do capitalismo. No caso da Índia, como da maioria dos países, de que ordem estamos falando? Da ordem da propriedade privada, da divisão social de uma minoria exploradora e uma maioria explorada, que, no caso desse país, está ancorada em uma religião e no senso comum da divisão entre castas, que legitimam o poder da burguesia. Ou seja, colocar mais policiais femininas é apenas uma forma de anestesiar a mobilização e legitimar a repressão aos que se levantam contra o governo e suas políticas.
A pena de morte e a castração também são medidas reacionárias, já que, culpando o “homem estuprador” em si, não respondem à raiz do problema da opressão. A violência às mulheres é funcional ao capitalismo, na medida em que, ao colocá-las em empregos inferiores, ao não remunerar o trabalho doméstico, ao pagar salários menores pelo mesmo serviço de um homem, utiliza do discurso e da ideologia de “inferioridade” para lucrar e explorar mais.
Nessa questão, apesar de décadas após sua publicação, as premissas do Programa de Transição, de Trotsky, seguem atuais, especialmente quanto à necessidade de que se liguem as demandas democráticas (tanto no caso das questões de plena emancipação contra o imperialismo, quanto na questão da mulher) não podem ser resolvidas de forma separada da luta da classe trabalhadora contra a burguesia. É necessário que a classe trabalhadora indiana se coloque contra a sua burguesia nacional que perpetra “por baixo dos panos” a opressão de castas e de gênero, e entendam esta como a mesma luta que a que se dá contra os monopólios imperialistas que, para além de se apoiar nestes preconceitos pré-capitalistas, descarregam sua crise nas costas da classe trabalhadora e usam suas mulheres como mão de obra barata, ajudando a assegurar seu espaço de oprimidas e passíveis a serem usadas como objetos, de trabalho precário ou de agressão sexual. Os novos tempos que se abrem após a crise capitalista anunciam importantes exemplos para os trabalhadores de todo o mundo. Nos processos egípcios, tornaram-se comuns as imagens de centenas de mulheres arrancando seus véus para lutar; no ano de 2008 as trabalhadoras têxteis da grande fábrica Ghazl Al-Mahala lideraram uma importante greve num país onde a opressão é grave.
A opressão às mulheres é algo milenar nesse país, e buscar condenar apenas os culpados pelos atos não garantirá que vivam livres da opressão. É necessário que se tenha uma política independente do governo. Que os sindicatos, organizações estudantis e movimentos sociais se apropriem das bandeiras das mulheres, sabendo também que se trata de uma luta contra o sistema capitalista. Trabalhadoras e trabalhadores precisam estar lado a lado para combater a opressão, não só aquela que se refere ao gênero, mas que o sistema de castas seja questionado pelo próprio povo indiano [9] – e não pela ideologia imperialista se colocando como mais progressista e expropriando-os de seus elementos culturais - mas enquanto sistema baseado no domínio e na opressão que enfraquece as massas indianas diante das amarras semicoloniais.
Nós acreditamos que não será possível acabar com a violência às mulheres enquanto persista este sistema baseado na miséria e em condições aberrantes de existência impostas a milhões de seres humanos pelos interesses de uma minoria com sede de lucro. Por isso, insistimos que a saída para tamanha violência não é individual. Enquanto isso, defendemos a necessidade de levar adiante uma enorme campanha que parta de exigir o fim da violência às mulheres, ao mesmo tempo em que exigimos refúgios e casas transitórias para as mulheres vítimas de violência e seus filhos e filhas, garantidos pelo Estado e sob controle das próprias vítimas, organizações de mulheres e trabalhadoras, com profissionais e sem a presença da polícia e da justiça. Nos locais de trabalho e nos sindicatos defendemos a criação de comissões de mulheres, independentes dos patrões, que deem atenção aos casos de assédio sexual e trabalhista ou de discriminação às trabalhadoras. Defendemos subsídios de acordo com o custo de vida para as vítimas de violência que estejam desempregadas, acesso à moradia e trabalho para todas. Licenças remuneradas para as trabalhadoras que atravessam situações de violência, com acesso à saúde pago integralmente pela patronal. Nos casos de estupro e assassinato, exigimos a prisão dos culpados.
Na Índia, hoje, o movimento transcende estas medidas mínimas e imediatas para lidar com a violência que ocorre diariamente contra as mulheres, justamente porque o movimento de massas passa a dar respostas que partem da mobilização e por isso podem ir além destas demandas. É por isso que as “saídas” de aumento policial e de toque de recolher não são para diminuir a violência às mulheres, são para conter este poderoso processo de mobilização desde as entranhas da Índia profunda que podem colocar em xeque a governabilidade deste país. É por isso que o enorme movimento de massas não pode dar nenhum passo atrás. É fundamental neste momento manter a independência dos governos, do imperialismo e dos patrões. Que o movimento se alie diretamente com as fábricas, lutando também contra a violência às mulheres dentro das fábricas e dos locais de trabalho. Que passe do questionamento à violência às mulheres ao questionamento desta sociedade capitalista, se aliando profundamente à classe operária e pensando as formas de auto-organização para colocar fim a esta situação de opressão e exploração.
O começo da luta contra a opressão às mulheres, a luta contra o sistema de castas e suas consequências, é um passo entusiasmante, mesmo que inicial, que estão dando as massas no planeta. A luta contra um dos mais milenares sistemas opressivos que o capitalismo mantem vivo para melhor dividir, humilhar e explorar a classe trabalhadora, é também um passo para erguer um fortíssimo movimento revolucionário. Trotsky dizia que aqueles que mais sofreram com o velho mais consequente lutarão pelo novo. As mulheres indianas estão entre os que mais sofrem com o velho em todo o planeta, e de sua luta – combinada ao marxismo revolucionário – pode erguer-se a novas alturas a luta do proletariado e das massas no planeta.
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[1] Gostaríamos que o nome desta vítima da opressão constasse em nosso artigo, no entanto nos deparamos com um problema de mesma origem: há uma lei na Índia que proíbe que sejam divulgados os nomes das vítimas de estupro. O pai da universitária pediu que o nome de sua filha fosse divulgado para que servisse de inspiração a outras mulheres estupradas e oprimidas, mas o governo indiano negou seu pedido, apagando a identidade desta jovem.
[2] Trotsky, Leon, Tarefas e perigos da revolução na Índia, http://ceipleontrotsky.org/
[3] Segundo a religião hindu, as castas são divisões feitas através de Brahma, divindade suprema e criadora do Universo. São seis tipos de castas: os brahmana são superiores na divisão social, já que teriam nascido da cabeça de Brahma; seguido dos ksatrya, que teriam nascido dos braços de Brahma; os vaisya, que teriam nascido das pernas de Brahma; e por último os sudra, que teriam nascido dos pés de Brahma. Há ainda os que sequer são considerados dignos de serem uma casta, os párias, que teriam nascido da poeira dos pés de Brahma. Esses são considerados como intocáveis ou dalit, haridchens, haryens.
[4] Os países que conformam os BRICs são: Brasil, Rússia, Índia, China e, posteriormente, em 2011, a África do Sul. São considerados os países “emergentes” devido ao seu crescimento econômico nos últimos anos.
[5] Em 2008, o governo indiano assinou um acordo de cooperação nuclear com os EUA, fazendo com que a Índia se tornasse a sexta maior detentora de energia nuclear do mundo. Isso certamente significa um maior atrelamento e controle dos EUA sobre a Índia.
[6] 46 No início da década de 1990, a Índia passou por reformas econômicas aos moldes da ofensiva neoliberal então vigente em todo o mundo. Após um período de severa estagnação, a economia indiana foi mais aberta ao capital estrangeiro, principalmente através das privatizações de setores que antes eram monopólios do governo.
[7] Carta de Lênin, “Às Operárias”, publicada no jornal Pravda, de 22 de fevereiro de 1920.
[8] A polícia indiana ainda não sabe quem foi o sexto homem que participou do estupro coletivo da jovem estudante.
[9] Já houve casos, como o do massacre de Khairlanji , em 2006, no qual uma família de dalits foi assassinada por membros de castas superiores, e suas mulheres foram arrastadas nuas pelas ruas antes de serem mortas. Isso gerou grande comoção popular e revolta, evidenciando que já há algum questionamento deste sistema por parte dos próprios indianos.