Artigo de Gilson Dantas, médico e doutor em sociologia pela UnB e editor da revista Contra a Corrente, diante da 3ª Marcha Nacional da Cidadania pela Vida em Brasília
(Brasília, 28/08/09) O profissional de saúde que, como eu, já tirou plantão em Pronto Socorro de hospitais públicos sabe – e a população também sabe - que nenhuma mulher chega à situação de aborto com prazer ou com qualquer forma de satisfação. É tudo ao contrário.
São levadas a isso por contingências sociais espúrias. É justamente por terem que viver e morrer à míngua no seu cotidiano, que essas companheiras – em regra duplamente oprimidas, pelo patrão e eventualmente pelo parceiro machista – chegam ao extremo de irem parar em algum insalubre Pronto Socorro, onde irão passar pela dor, o constrangimento e até a morte por conta de uma gravidez indesejada. São milhares de mulheres todos os meses. Na Argentina, onde o aborto também é criminalizado, estima-se que morre uma mulher por dia em aborto clandestino (chegam demasiado tarde - quando chegam - à emergência médica); no Brasil a estimativa de mortes é muitíssimo maior. Sabemos que mulheres jovens nessa condição já chegam ao Pronto Socorro em estado desesperador.
Obrigadas a viver em condições desumanas em seu bairro e no trabalho, em meios de transporte desumanos, sem escolaridade e sem acesso fácil a um pré-natal, ao serviço ginecológico qualificado ou à orientação e métodos de prevenção à gravidez, as jovens mais pobres e trabalhadoras são empurradas para o aborto como porta de saída e última opção para uma gravidez que não escolheram; ao terem que chegar a esse extremo estão, em todo caso, tentando fazer valer seu direito básico, elementar e mais democrático ao próprio corpo. E aí, desesperadamente se dão conta que assim como mal tiveram o direito à própria sexualidade (para além dos limites da reprodução e do comércio do corpo), ao lazer, ao trabalho, à assistência de saúde, vão ter cassado pelo governo o seu direito de optar ou não pela gravidez.
O que mais chama a atenção nisso tudo é que as mesmas forças conservadoras e/ou mistificadoras, que estiveram cem por cento ausentes na defesa incondicional do direito da mulher à própria sexualidade, a creches públicas e gratuitas, ao trabalho pleno e à assistência médica gratuita universal e de qualidade, costumam aparecer diante da mulher oprimida, nesse momento de desespero, de espada em riste e numa postura que lembra o pior da Idade Média, para berrar contra a mulher que deseja ser dona do que já é seu por natureza: seu corpo!
O exemplo vivo neste momento é o da manifestação antiaborto (intitulada “3ª. Marcha Nacional da Cidadania pela Vida”) programada para este domingo (30/8/9) aqui em Brasília, organizada pela santa aliança entre deputado do PT (Luiz Bassuma, PT-BA, da Frente Parlamentar contra o Aborto), Igreja católica (a CNBB tem divulgado o evento), uma ONG do Ceará (que propaga, dentre outras coisas, o espiritismo) e outras figuras afins em um ato de rua financiado com dinheiro público segundo noticia a imprensa.
Faz-se necessário que todos aqueles que defendemos os direitos da mulher trabalhadora, os sindicatos dos trabalhadores da saúde, os democratas em geral nos pronunciemos e manifestemos contra, a começar pelos companheiros e correntes políticas que se alinhem com as lutas democráticas ou com o socialismo (aliás, defender o socialismo não tem nada a ver com essa bandeira retrógrada antiaborto como faz Heloísa Helena do PSOL, ao mesmo tempo em que defender a cidadania não tem nada a ver com a negação do direito mais elementar da cidadã, no caso, de decidir sobre o seu próprio corpo, direito aliás permitido em 49 países do mundo sem restrição alguma).
Manifesto aqui o meu repúdio a essa marcha em Brasília ao mesmo tempo em que faço uma veemente saudação ao grupo de mulheres Pão e Rosas que bravamente vem lutando pelos direitos das mulheres e impulsionando a importante Campanha Latino-americana pelo Direito ao Aborto.
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