segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Tirem seus rosarios de nossos ovários!


Pelo direito ao aborto legal, gratuito e seguro!

08|10 [quarta] 18h30 : Discussão sobre a questão do aborto. Bibliografia básica na pasta 78 do CASS e neste blog.

10|10 [sexta] 18h30 : Exibição do filme "4 meses, 3 semanas e 2 dias" no CASS.

19h40 : Intervenções artísticas na Prainha. E... exposição de cartazes, depoimentos, telagem de camisetas, música e cerveja no CASS!

Local: Centro Acadêmico de Serviço Social da PUC-SP

Impulsionado pelo Movimento A Plenos Pulmões e independentes

sábado, 4 de outubro de 2008

Mapa de referência para a discussão sobre o Aborto


O mapa, retirado da Revista Cláudia, mostra as regiões do mundo onde o aborto é legalizado e aonde não é.


Texto de referência para a discussão sobre o Aborto [3]

Direito ao aborto - Conquistar nossos corpos, decidir sobre nossas vidas

Barbara Funes (integrante da agrupação Pan y Rosas - Argentina)

14 de fevereiro de 2005

A primeira perversão é o silêncio. Todas as estatísticas existentes sobre os abortos clandestinos e as mortes e danos irreparáveis que produzem na saúde das mulheres dos setores populares são apenas estimativas. Isso porque a penalização do aborto implica que sua prática e suas consequências funestas sejam caladas.

De acordo com o Instituto Alan Guttmacher[1], na América Latina se calcula que o número anual de aborto chega a quatro milhões e 119 abortos de cada 100 mil terminam na morte da mulher. Diferentemente, nos países aonde o aborto é legal, essa cifra é de entre 0,2 e 1,2 a cada 100 mil abortos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) calcula em 6 mil o número de mortes na região por abortos sépticos, ou seja, abortos clandestinos ou mal praticados[2].

A América Latina e o Caribe são consideras as regiões com a taxa de abortos inseguros mais elevada a nível mundial: anualmente se praticam 3,7 milhões de abortos, pelos quais se estima uma taxa de 26 a cada mil mulheres em idade reprodutiva. Os abortos inseguros são a causa de 25% de todas as mortes femininas que ocorrem nos países latino-americanos e no Caribe, e de cerca de 12% na África e de 10% na Ásia[3]. Se calcula que no México ocorrem aproximadamente 500 mil abortos provocados, sendo a terceira ou quarta causa de morte entre as mulheres, enquanto que ao menos mil morrem a cada ano como resultado de abortos mal praticados[4]. Em Chiapas cerca de 20% das mulheres morrem por esta razão e uma a cada dez que engravida recorre aos abortos clandestinos[5]. No Uruguai se realizam 33 mil abortos por ano[6].

Na Argentina se praticam cerca de 750.000 abortos[7]. Entre 1999 e 2002, as mulheres que foram atendidas por esta causa nos hospitais públicos aumentaram em 46%[8]. As hospitalizações de mulheres por complicações de abortos são mais de 70.000 por ano[9]. Somente em Buenos Aires, a cada treze dias morre uma mulher por consequência de abortos clandestinos enquanto 32.000 ingressaram aos hospitais públicos por esta causa de acordo com as estatísticas do Ministério da Saúde. No Brasil, a estimativa é que ocorram de 750 mil a 1 milhão de abortos clandestinos por ano, cujas complicações constituem a quarta causa de morte materna no país.

Isto quer dizer que as mulheres trabalhadoras e de setores populares que não contam com os meios para custear um aborto clandestino asséptico devem escolher entre ter um filho que não desejam ou colocar em risco sua vida, deixando-a nas mãos das máfias da saúde.


A história da maternidade compulsiva

Depois da revolução burguesa de 1789 na França, o Estado começou a tomar a maternidade como uma questão pública. Diderot escreveu que "um Estado é tão mais poderoso quanto mais povoado se encontre (...), e quanto mais numerosos sejam os braços empregados no trabalho e na defesa"[10]. Assim o Estado estabeleceu como tarefa natural e autêntica das mulheres a maternidade e a nossa capacidade biológica começou a reger nossas vidas. Foram estabelecidas políticas de saúde pública, incluindo a regulação e formação de obstetras e parteiras e a erradicação gradual das parteiras tradicionais (caseiras), onde os profissionais da saúde, verdadeiros agentes do Estado, interviam no corpo e na vida das mulheres. O direito de propriedade se aplicou "legalmente" sobre nós mulheres.

Desde então, o Estado coloca em nossa cabeças que nosso dever é sermos mães, aconteça o que acontecer. Querem que sejamos incubadoras submissas ao negarmos o direito de decidir sobre nossos destinos. Necessitam que a miséria se expanda à medida que se expande a população. A força de trabalho humana é o denominador comum em todo tipo de mercadorias, assim como o abastecimento dos serviços tais como transporte, energia, telecomunicações, educação, saúde. Mas enquanto produzimos enormes lucros, eles se apropriam da imensa maioria e nos destinam o mínimo para subsistir.

A realização das tarefas domésticas em forma invisível e gratuita que realizam as mulheres dos setores populares para garantir a subsistência da classe operária e os salários mais baixos para as trabalhadoras, são verdadeiros mecanismos de pressão para diminuir os salários de todos e todas. Necessitam que a classe operária se reproduza para ter um exército industrial e sua reserva com milhões de trabalhadoras e trabalhadores desempregados para pressionar os salários pra baixo.

A época imperialista tem regulamentado a vida sexual de homens e mulheres ao redor de um objetivo fundamental: a reprodução. Ao dizer de Antonio Gramsci "...não pode desenvolver-se o novo tipo de homem exigido pela racionalização da produção e do trabalho enquanto o instinto sexual não tenha sido regulado de acordo com esta racionalização, não tenha sido também racionalizado"[11].

Seu duplo discurso pretende nos enganar: o mandato imperativo é ter filhos, e por isso o aborto é ilegal. Mas as trabalhadoras que efetivamente cumprem com o mandato se encontram com a saúde pública que se deteriora cada vez mais e com salários de miséria que não são suficientes para garantir o cuidado de seus filhos durante suas horas de trabalho. A imensa maioria das grandes empresas e das dependências do Estado não fornecem creches gratuitas, e no melhor dos casos dão subsídios que nunca cobrem o custo das creches privadas. As formas de opressão e exploração para as trabalhadoras se multiplicam de maneira exponencial.

Por outro lado, a Igreja, essa antiga misógina, se tem colocado como defensora incondicional da "criança por nascer", como defensora da vida e da família como célula social. E por que? Rastreando suas posições ao largo da história, se tem colocado como defensora da maternidade, já que necessitou que seus fiéis se reproduzissem a partir dos nascimentos para que suas idéias se propagassem[12].

Mas existe outra razão: todas as criaturas são obras de "Deus". Que as mulheres determinemos por nós mesmas se desejamos ou não dar a vida, é um fato que coloca em questão todo o sistema de idéias armado pelos teóricos da Igreja. Seu deus onipresente é alguém em quem deposita sua fé para que resolva os problemas da humanidade. Portanto, o poder deste "deus" determina a vida e a morte de todos os seres vivos. A humanidade deve submeter-se ao destino já escrito, a um poder externo. Estes conceitos resultaram legitimadores das classes dominantes por centenas de anos. E nos tem imposto a noção de que ninguém pode mudar a realidade e nem construir seu próprio destino. Esta ideologia constitui um dos pilares fundamentais da dominação de uma minoria parasitária sobre a classe trabalhadora.

Mas é a mesma Igreja obscurantista a que criou a Inquisição que custou numerosas vidas, em sua maioria mulheres, julgando a todas e todos aqueles dos quais se suspeitava que não acreditavam incondicionalmente em suas verdades. Pior ainda, seu principal objetivo mediante a Inquisição não foi a matança em si mesma, senão domesticar os espíritos rebeldes da época, mediante torturas e humilhações. Em tempos mais recentes, esta defensora da vida apoiou a ditadura militar e hoje, em toda a América Latina se tornam públicos centenas de casos de padres abusadores de crianças e mulheres.

Este ano, no México se tornou público que os 30 milhões de pesos que o grupo ultra conservador Próvida[13], ligado à Igreja e ao Opus Dei, recebeu do governo federal para seus programas internos, U$ 12.892.576 foram utilizados para gastos com publicidade anti-aborto. Enquanto isso, a Secretaria de Saúde (SS) exerceu nesse mesmo ano, U$ 9.914.456 em seus programas de prevenção da AIDS. A assistência da AIDS passou de U$ 208.000.000 aprovados pela Câmara de Deputados em dezembro de 2002, aos U$ 178.000.000[14].


Legalização ou descriminalização? Um debate necessário

Historicamente, o movimento de mulheres se debateu entre estas duas alternativas. A legalização do aborto implica a legitimação por parte do Estado destas práticas, mas não necessariamente garante o acesso gratuito aos serviços médicos para realizá-los. A descriminalização não quita o caráter de "atentado contra a vida" da interrupção voluntária de uma gravidez, mas tampouco nos assegura políticas de saúde pública que garantam a gratuidade tanto da realização dos abortos como de sua prevenção.

Para nós que impulsionamos a agrupação de mulheres Pan y Rosas - Argentina somos as mulheres trabalhadoras e de setores populares quem devemos encabeçar a luta pelo direito ao aborto livre e gratuito e quem pode garanti-lo efetivamente. Em 1917 na revolução operária que ocorreu na Rússia, foi o Estado dos Sovietes[15] onde as mulheres conseguiram pela primeira vez, entre outros direitos, o direito ao aborto[16]. O que está em jogo é nossa vida e o direito de decidir sobre nossos destinos. Lutamos pela liberdade de decidir se queremos ter filhos ou não, quando e com quem tê-los. Lutamos para eliminar a tutela da Igreja e do Estado sobre nós. Exigimos contraceptivos gratuitos para exercer livremente nossa sexualidade. Exigimos o direito ao aborto livre, seguro e gratuito para todas as mulheres dos setores populares. Que o Estado garanta os serviços médicos necessários nos hospitais públicos, e que sejam de qualidade.

Quanta confiança em nós mesmas ganhariamos se nos apropriassemos de uma vez e para sempre de nossos corpos! Somente organizadas de forma independente do Estado, da Igreja e dos partidos patronais, confiando em nossas próprias forças, podemos exigir nossos direitos, inclusive arrancar-lhes leis que nos beneficiem. Julieta Lanteri[17], uma feminista do começo do século XX declarou uma vez que "Os direitos não se mendigam. Se conquistam." Nós acreditamos que as mulheres devemos lançar-nos à conquista de nossas vidas. Por isso lutamos pelo direito ao aborto livre e gratuito.

Notas
1. Organização estadounidense sem fins lucrativos orientada em pesquisas sobre a saúde sexual e reprodutiva.
2. Dados extraídos da Cimac Noticias “América Latina: entre desinformación y condena”.
3. Dados extraídos da Cimac Noticias “Demanda personal médico información de marco legal sobre aborto en México"
4. Dados extraídos da Cimac Noticias “Penalización de aborto aumenta su clandestinidad” , por Rafael Maya.
5. Dados extraídos da Cimac Noticias “Abortos mal practicados elevan índice de muerte materna” por Sandra de los Santos Chandomí.
6. Dados extraídos da Cimac Noticias “Derechos sexuales y reproductivos, lo que se discute en Uruguay”, por Isabel Villar, jornalista da República de las Mujeres de Uruguay.
7. Dados extraídos de “Derecho a no parir” Página 12, suplemento LAS 12, 17/10/2003, Lila Pastoriza.
8. Dados extraídos de “Libertad de vientres” Página 12, suplemento LAS 12, 26/09/2003, Martha Rosenberg.
9. Dados extraídos do jornal Clarín de junho 2004.
10. Giulia Galeotti “Historia del Aborto”.
11. Antonio Gramsci “Americanismo y fordismo”
12. Guy Bechtel, “Las cuatro mujeres de Dios. La puta, la bruja, la santa y la tonta”.
13. O grupo Provida na Argentina foi um dos principais impulsionadores da postulação da juíza Carmen Argibay por ser atéia, solteira, sem filhos e por estar a favor do aborto a título pessoal.
14. Dados extraídos da Cimac Noticias, “Canaliza Provida 13 millones de pesos a publicidad antiaborto”, por Rafael Maya.
15. Conselhos operários, de camponeses e de soldados que tomaram em suas mãos os destinos de seu país. São organismos de democracia direta onde as trabalhadoras e os trabalhadores tiveram hegemonia.
16. Andrea D’Atri “Pão e Rosas. Identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo”.
17. (1873-1932) Faminista de origem italiana radicada na Argentina em sua infância, iniciou como médica em 1907. Lutou pelos direitos políticos e civis das mulheres. Foi candidata a deputada nacional em 1919 com o apoio da União Feminista Nacional e do Comitê Pró Direito do Sufrágio Feminino. Entre suas propostas, além do direito ao voto das mulheres, colocava a jornada reduzida para as trabalhadoras, salários iguais para mulheres e homens e divórcio absoluto.

Texto de referência para a discussão sobre o Aborto [2]

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ [na visão da igreja]

DECLARAÇÃO SOBRE O ABORTO PROVOCADO

[...]

A tradição da Igreja sempre considerou a vida humana como algo que deve ser protegido e favorecido, desde o seu início, do mesmo modo que durante as diversas fases do seu desenvolvimento. Opondo-se aos costumes greco-romanos, a Igreja dos primeiros séculos insistiu na distância que, quanto a este ponto, separa deles os costumes cristãos. No livro chamado Didaché diz-se claramente: « Tu não matarás, mediante o aborto, o fruto do seio; e não farás perecer a criança já nascida » [6] . Atenágoras frisa bem que os cristãos têm na conta de homicidas as mulheres que utilizam medicamentos para abortar; ele condena igualmente os assassinos de crianças, incluindo no número destas as que vivem ainda no seio materno, « onde elas já são objecto da solicitude da Providência divina » [7] . Tertuliano não usou, talvez, sempre a mesma linguagem; contudo, não deixa também de afirmar, com clareza, o princípio essencial: « É um homicídio antecipado impedir alguém de nascer; pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda para nascer. É já um homem aquele que o virá a ser » [8]

[...]

Devido o fato de tal texto ser muito longo segue abaixo o link do site Vaticano com o texto na íntegra:

http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19741118_declaration-abortion_po.html

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Texto de referência para a discussão sobre Aborto [1]

O ABORTO: UM RESGATE HISTÓRICO E OUTROS DADOS

Néia Schor
Augusta T. de Alvarenga

Resumo: Preocupados com os resultados recentes de pesquisas brasileiras sobre complicações após aborto, que indicam um crescente aumento no número desses eventos, além de registrarem uma alta incidência dos mesmos entre adolescentes, os autores propõem-se a analisar, neste trabalho, a prática do aborto sob uma ótica histórica, como um subsídio para se "repensar"a questão em futuras políticas de saúde no Brasil. Apresentam, para tanto, enfoques médicos, religiosos, políticos, legais, sociais, econômicos e culturais sobre a questão do aborto, esposados pelos povos, desde as antigas civilizações, orientais e ocidentais, até os dias de hoje - todos eminentemente ditados por fatores econômicos, dependentes, obviamente, da facção que estivesse no poder em determinado contexto histórico. É apresentada, também, a legislação brasileira sobre o assunto.

Palavras-chave: aborto, ótica histórica, saúde da mulher.


INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo trazer à tona alguns dados históricos a respeito da questão da prática do aborto, analisando-a sob a ótica das várias civilizações e religiões que ajudaram a compor a história do mundo.

O universo pesquisado foi de 2.588 mulheres carentes, apresentando complicações pós-aborto que procuraram o Hospital Municipal de Santo André no município da Grande São Paulo, no período de janeiro de 1978 a dezembro de 1982.

As conclusões mais marcantes foram a duplicação do número de abortos atendidos pelo serviço, na proporção de 1 aborto para 3,6 partos para 1 aborto para 1,8 partos, em 1978 e 1982 respectivamente e grande incidência do evento entre adolescentes23.

Dados como esses - concretos e expressivos - parecem levar a certo tipo de reflexão até mesmo óbvia: em que medida o aparente descaso por parte de autoridades médicas e governamentais em relação à questão da prática do aborto não está, de certa forma, contribuindo para o agravamento do problema?

Seguindo essa linha de raciocínio, estaríamos abrindo espaço para discussões em torno das políticas de: planejamento familiar; saúde reprodutiva; controle da natalidade; qualidade de assistência à mulher; qualidade de vida da população e, por que não dizer, da polêmica questão da liberdade da mulher em relação ao seu próprio corpo. De uma forma ou de outra, sabe-se que o aborto é praticado no Brasil: nas populações carentes ou abastadas, em meio a boas condições de higiene ou não, entre mulheres jovens ou maduras. Até que ponto não estaríamos funcionando apenas como mero observadores de uma escalada que pode trazer conseqüências graves para a vida afetiva, biopsíquica e social de uma população feminina que vem sendo engrossada dia após dia?


O ABORTO COMO PRÁTICA SOCIAL E QUESTÃO DE SAÚDE

Ao analisarmos a questão do aborto no Brasil de hoje não devemos nos desvincular de todo o conhecimento que se tem sobre o assunto em termos mundiais. Embora não seja possível abarcar todas as nuances que o tema comporta, vamos nos deter aqui nos principais trabalhos realizados a partir de 1960, com o objetivo de verificar como a questão do aborto vem sendo tratada ao longo dessas décadas.

A partir da tese de LIMA14, um marco nas pesquisas junto a escolas médicas, foi mostrada a incidência do aborto como responsável por inúmeras mortes hospitalares. Assim, esta prática - e suas conseqüências - eram vistas como problemas de saúde pública, requerendo atenção médica especial, além de propiciar a ocupação, a alto custo, de leitos hospitalares.

Para CANESQUI6, que analisou a constituição da política de planejamento familiar no Brasil, o aborto constituía um problema universal, que afetava a saúde pública e provocava a desintegração da família gerando problemas de diferentes ordens à mulher.

Várias vezes, em pesquisas realizadas em nosso país, o aborto foi associado a crime e doença, transformando- se num problema médico-social que incidia principalmente na faixa de mulheres entre 25 e 29 anos.

As principais causas desse estado de coisas estariam relacionadas, segundo uma gama variada de análises, com o atraso cultural, a falta de educação sexual, a paternidade "irresponsável" e a ignorância do uso de métodos anticoncepcionais.

Pelos diferentes aspectos que encerra sabe-se hoje que somente a atenção médica não reduz a ocorrência dessa prática social do aborto provocado, uma vez que vários fatores estão presentes na sua ocorrência e no processo de atendimento à questão. Como saída geral mais relevante e mais eficaz, estaria a colocação em prática de uma efetiva política de planejamento familiar ou reprodutivo onde a mulher, vista na sua totalidade, lançaria novos elementos à análise do problema.

Para HUTCHINSON12, o aborto está situado entre os vários tabus que podem povoar uma sociedade, constituindo motivo de vergonha em alguns meios, sobretudo entre as classes mais altas. Entretanto, para ele, a prática do aborto como método limitador da família não é exclusiva de nenhum grupo econômico ou social.

Em relação à magnitude do problema como questão de saúde pública NAKAMURA & BARRETO18, citam que, entre 2800 mulheres entrevistadas, 15% delas já tiveram histórico de aborto espontâneo ou provocado. Além disso, constataram que a incidência do aborto é predominantemente maior nas áreas urbanas, numa proporção 2:1 em relação às áreas rurais, conforme os dados seguintes:

• São Paulo (município) - 15%
• Outras áreas urbanas - 13,5%
• Áreas rurais - 7%

Corroborando esses dados FARIAS9 revela que entre 1697 mulheres pesquisadas no decorrer de 3 meses, num hospital de Salvador, 21% registraram complicações pós-aborto. Também RICE-WRAY22 cita que para cada 1000 partos encontrou 233 mulheres tratadas por complicações pós-aborto. Vale destaque a pesquisa realizada por NEME et al19, abrangendo o período 1944-1962, cujos dados demonstram que das 5500 complicações de gravidez ou parto, um terço estava relacionado com complicações pós-aborto.

Em termos de Brasil calcula-se, na atualidade, que sejam praticados 2,5 milhões de abortos por ano, o que equivaleria a um total de 6850 abortos por dia, 285 por hora e 5 por minuto1, 20, 21.

Esse valor adquire grande significado para o campo da saúde quando se observa as complicações mais frequentes, tais como: infecção pélvica, hemorragia e choque séptico. Deve-se considerar igualmente que o aborto provocado pode afetar a mulher e as gestações subsequentes (prematuridade, gravidez ectópica, abortamento espontâneo, baixo peso ao nascer). Com a repetição do número de abortos praticados os riscos se acentuam, trazendo não só implicações de ordem orgânica, mas também social, econômica e psíquica.

Entre as consequências de ordem orgânica, podemos citar até mesmo o risco da infecundidade. Entre os casos de infecção puerperal, sabe-se que 60% deles são ocasionados por aborto provocado (choque septêmico)19.

Outro dado marcante diz respeito aos óbitos maternos em 10 cidades latino-americanas: 34% das mortes são provocados por aborto. No Chile, por exemplo, a taxa percentual varia de 30% a 41% no que diz respeito aos óbitos maternos registrados1, 7,18,20,25.

Do ponto de vista social a prática do aborto está relacionada, além de processos gerais, com uma série de processos particulares que vão desde as dificuldades de sobrevivência da mulher ou da família em meio a uma urbanização desenfreada, à carência de programas educativos e de planejamento reprodutivo, à alta do custo de vida, além de outros. Neles residem as possibilidades da mulher procurar o aborto como meio de terminar uma gravidez indesejada ou "impossível" de ser levada a cabo pela precariedade de sua situação pessoal ou de condição de vida.

A questão do aborto entre as adolescentes constitui um capítulo à parte no universo relacionado a essa prática. É fato que hoje em dia as adolescentes apresentam um início de vida sexual mais precoce. Num país desenvolvido como os Estados Unidos sabe-se que 50% das jovens são sexualmente ativas e que destas, 50% não usam métodos contraceptivos. Na Inglaterra e País de Gales (1978), cerca de 3% do total de abortos praticados referem-se a jovens menores de 16 anos, e destas, 50% procuraram os serviços públicos2,3. O que dizer, então, de um país como o Brasil, marcado pelo analfabetismo e pela falta de informação na área?


UM ACOMPANHAMENTO HISTÓRICO DA QUESTÃO

Num país em que não raras vezes crimes de pequeno, médio ou grande porte deixam de ser julgados e, consequentemente, punidos - pela concorrência dos mais diversos fatores, tais como, falta de provas, ineficiência dos sistemas policiais e/ou jurídicos, interesses "ocultos", não haverá de ser diferente em relação à prática do aborto, considerada ilegal pelo atual Código Penal, em vigor desde 1940. Segundo Decreto-Lei no 2848, de 7 de dezembro de 1940 (artigos 124 a 127), somente duas modalidades de aborto não são puníveis: o aborto terapêutico - feito como tentativa de salvar a vida da gestante - e o aborto sentimental - decorrente de gravidez por estupro8,10, 11.

Ainda que no Brasil, o aborto, essa prática clandestina por excelência, carregue a marca da reprovação, certamente não terá sido assim no decorrer da história da humanidade. Sabe-se que desde os povos da antiguidade este era difundido entre a maioria das culturas pesquisadas. O imperador chinês Shen Nung cita em texto médico escrito entre 2737 e 2696 a.C. a receita de um abortífero oral, provavelmente contendo mercúrio.

Na antiga Grécia, o aborto era preconizado por Aristóteles como método eficaz para limitar os nascimentos e manter estáveis as populações das cidades gregas. Por sua vez, Platão opinava que o aborto deveria ser obrigatório, por motivos eugênicos, para as mulheres com mais de 40 anos e para preservar a pureza da raça dos guerreiros. Sócrates aconselhava às parteiras, por sinal profissão de sua mãe, que facilitassem o aborto às mulheres que assim o desejassem10. Já Hipócrates, em seu juramento, assumiu o compromisso de não aplicar pressário em mulheres para provocar aborto11.

Entre os Gauleses, o aborto era considerado um direito natural do pai, que era o chefe incontestável da família, com livre arbítrio sobre a vida ou a morte de seus filhos, nascidos ou não nascidos10. O mesmo ocorria em Roma, onde o aborto era uma prática comum, embora interpretada sob diferentes ópticas, dependendo da época. Quando a natalidade era alta, como nos primeiros tempos da República, ela era bem tolerada. Com o declínio da taxa de natalidade a partir do Império, a legislação se tornou extremamente severa, caracterizando o aborto provocado como delito contra a segurança do Estado5.

O livro do Êxodo cita que, dentre os povos hebreus, era multado aquele homem que ferisse mulher grávida, fazendo-a abortar. Esse ato de violência obrigava aquele que ferisse a mulher a pagar uma multa ao marido desta, diante dos juízes; se, porém, a mulher viesse a morrer em consequência dos ferimentos recebidos aplicava-se ao culpado a pena de morte.

Ainda que a regra geral se voltasse para a severidade legal, que punia a mulher com o exílio ou com castigos corporais extremados, na prática imperava quase sempre a impunidade. Com o advento do Cristianismo, entretanto, o aborto passou a ser definitivamente condenado, com base no mandamento "Não Matarás". Essa posição é mantida até hoje pela Igreja Católica mas, ao contrário do que se possa pensar, ela não foi tão uniforme ao longo dos anos. Interesses políticos e econômicos contribuíram para que isso acontecesse.

São Tomás de Aquino, com sua tese da animação tardia do feto, contribuiu para que a posição da Igreja com relação à questão fosse mais benévola do que nos dias de hoje11.

No Século XIX, o aborto expandiu-se consideravelmente entre as classes mais populares, em função do êxodo crescente do campo para a cidade e da deterioração de seu nível de vida. Isso certamente constituía uma ameaça para a classe dominante já que representava um decréscimo na oferta de mão-de-obra barata, tão necessária para a expansão das indústrias. Na classe alta o controle da natalidade era obtida através de uma forte repressão sexual sobre seus próprios membros e a prática do aborto, embora comum, era severamente condenada5,10.

Hoje em dia torna-se mais e mais comum que o número de defensores da prática livre do aborto venha crescendo respaldados em razões de ordem econômica, política, social e demográfica muito embora, em função de contextos históricos, a questão possa apresentar-se controvérsa e ambígüa.

Alguns acontecimentos históricos, no início deste século, ocasionaram certas modificações importantes nas legislações que regiam a questão do aborto e são explicitadoras dessas diferentes ordens de motivos que fundamentam concepções e políticas a respeito.

Com a Resolução de 1917, na União Soviética, o aborto deixou de ser considerado um crime naquele país, tornando-se um direito da mulher a partir de decreto de 1920. Processo inverso aconteceu em alguns países da Europa Ocidental, sobretudo aqueles que sofreram grandes baixas durante a Primeira Guerra Mundial, que optaram por uma política natalista, com o endurecimento na legislação do aborto. Como exemplo, podemos citar a França, que introduziu uma lei particularmente severa no que diz respeito não só à questão do aborto, mas também quanto aos métodos anticoncepcionais10 ,21.

Com a ascensão do nazifacismo, as leis antiabortivas tornaram-se severíssimas nos países em que ele se instalou, com o lema de se criarem "filhos para a pátria". O aborto passou a ser punido com a pena de morte, tornando-se crime contra a nação, a exemplo do que ocorreu em certo momento no Império Romano.

Após a Segunda Guerra Mundial, as leis continuaram bastante restritivas até a década de 60, com exceção dos países socialistas, dos países escandinavos e do Japão (país que apresenta lei favorável ao aborto desde 1948, ainda na época da ocupação americana)10, 21,26.

A partir dos anos 60, em virtude da evolução dos costumes sexuais, da nova posição da mulher na sociedade moderna e de outros interesses de ordem político-econô mica, a tendência foi para uma crescente liberalização. Acentuou-se na década de 70 e as estatísticas revelam que, em 1976, 2/3 da população mundial já viviam em países que apresentaram as leis mais liberais, mais da metade delas foi aprovada nesta última década.

Mas, há também casos de países que voltaram às leis anteriores, como aconteceu com a Romênia, Bulgária e Hungria (razões de ordem demográfica) e com Israel (motivos político-religiosos).

Se fôssemos traçar um quadro indicador das relações entre os diversos países do mundo e o tratamento dado à questão do aborto, teríamos10,11, 15,21:

• o aborto é realizado por meio de simples solicitação - 35%
• o aborto é realizado por razões de ordem social - 24%
• o aborto é realizado por razões de ordem médica, eugênica ou
• humanitária - 20%
• o aborto é realizado para salvar a vida da mãe - 13%
• o aborto é totalmente proibido - 4%
• situação desconhecida - 4%

As situações apresentadas por TIETZE27 e BARRON4 não diferem muito do que se observou no quadro acima.


ASPECTOS JURÍDICOS

O Código Penal, que atualmente vigora em nosso país, data de 1940 e é o terceiro existente no Brasil. Os dois primeiros, de 1830 e 1890, eram bem mais rigorosos que o atual, não prevendo a exceção do aborto para salvar a vida da mãe ou em caso de gravidez decorrente de estupro, conforme se tem hoje. Segundo o Código Penal hoje em vigor, estas duas modalidades de aborto previstas por lei só podem ser praticadas por médicos; o auto-aborto é punido, teoricamente, da mesma forma que o praticado por terceiros, sendo menor a pena para o primeiro (detenção de 1 a 3 anos, de acordo com o artigo 124).

Quanto ao aborto provocado por terceiros, as penas diferem quando há consentimento da gestante, sendo a pena de reclusão de 1 a 4 anos no primeiro caso e de 3 a 10 anos no segundo. Em caso de haver lesões corporais graves na gestante, ou mesmo sua morte, as penas podem ser aumentadas de um terço, ou duplicadas.