Publicamos abaixo a fala de Andrea D'Atri* no
IV Simposio Lutas Sociais, GEPAL-UEL, Londrina - Brasil
Sendo um simpósio sobre as lutas sociais, quero fazer uma homenagem a dez jovens torturados e assassinados pela ditadura genocida Argentina, faz –hoje- exatamente trinta e quatro anos, na operação militar conhecida como A Noite do lápis. Neste momento, em Buenos Aires, milhares de estudantes de ensino médio e superior estão demonstrando em comemoração a esta data, mas também em defesa da educação pública e gratuita, em um processo de luta que leva várias semanas de assembleias nas faculdades e escolas, e manifestações.
Em menos de um século a vida das mulheres mudou muito mais radicalmente que a vida dos homens.
As mulheres invadimos as escolas e as universidades que nos haviam sido vedadas durante séculos. Nós, as “irracionais”, agora podemos ser filósofas e matemáticas, historiadoras, médicas, engenheiras e artistas. As mulheres, hoje somos maioria entre os que alcançam altos níveis de educação.
Mas também, atualmente, as mulheres e as meninas somos setenta por cento dos analfabetos do planeta.
Hoje, como nunca antes na história, as mulheres ingressamos ao mundo do trabalho: nos últimos dez anos se multiplicou nossa presença no mercado de trabalho e a tendência não cessa. Somos professoras, enfermeiras, tecelãs e cozinheiras, como o temos sido sempre. Seguimos semeando a semente e recolhendo o fruto, limpamos nossas casas e as dos demais. Mas também manejamos máquinas e ferramentas, caminhões e foguetes, perfuramos o solo em busca de petróleo e mergulhamos no fundo dos oceanos.
Mas também, agora, quando nós saltamos as valas que se interpunham entre o “mundo reprodutivo” do lar e do externo mundo do trabalho assalariado, a metade das pessoas que vivem de seu salário, trabalha em condições precárias. São um bilhão e oitocentos milhões de pessoas; a maioria mulheres. Tudo indica que isto irá de mal a pior sob o látego da crise econômica mundial que se desatou nos Estados Unidos e que agora transladou seu epicentro à Europa: na próxima década, dois terços da classe trabalhadora não terá contrato nem benefícios sociais e também, a maioria que estará nessas condições, seguirão sendo mulheres.
As pioneiras feministas do final do século dezenove teriam imaginado que, alguma vez, conseguiríamos que a reprodução sexual não fosse um fatalismo? Hoje, em dezenas de países existem direitos sexuais e reprodutivos, respeita-se legalmente a diversidade sexual, em dez países do mundo – entre eles a Argentina – está legalizado o casamento entre pessoas do mesmo sexo e em alguns se despenalizou o aborto.
Poderia se dizer que temos avançado enormemente, sempre e quando fizermos a ressalva de que meio milhão de mulheres morrem, a cada ano, por complicações na gravidez ou no parto, algo que, a esta altura do desenvolvimento científico e médico, deveria ser perfeitamente evitável. Fazendo um simples cálculo poderíamos dizer que, a cada cinco anos, produz-se a mesma quantidade de mortes de mulheres que as provocados nos cinco anos que durou o extermínio nazista em Auschwitz. A cada cinco anos, repete-se um campo de concentração de Auschwitz para as mulheres mais pobres do planeta.
Mas por acaso não é a primeira vez na história que as mulheres chegamos, em um número sem precedente, nos postos altos das instituições do Estado? Há mulheres presidentas e parlamentarias, mulheres em cargos ministeriais e a cargo das forças armadas, também há mulheres nas cortes e a frente dos sindicatos... só nos resta ocupar o trono do Vaticano!
Ainda que também temos que dizer que com o desentendimento ou com o aval, com o apoio e com a legitimação, com a participação ou diretamente sob as ordens de algumas destas mulheres, no mundo habitam mais de um bilhão e quinhentos milhões de pobres, que subsistem com menos de dois dólares diários. E setenta por cento somos mulheres e meninas.
A pergunta iniludível é: como pode ser que estejamos tão mal, se vínhamos tão bem? Esta é a reflexão que gostaria de fazer hoje com vocês.
Poderíamos começar por assinalar que, nas últimas três décadas, o imperialismo avançou sobre as conquistas da classe trabalhadora e dos povos oprimidos do mundo, mas que, diferentemente de outros momentos anteriores do século vinte, desta vez, o avanço “neoliberal”, pode-se levar a cabo com métodos relativamente “pacíficos”. Diferentemente da Segunda Guerra Mundial, nem nos Estados Unidos, nem na Inglaterra, Alemanha ou Japão, necessitaram de um Mussolini ou um Hitler, nem romper com a democracia burguesa, para destruir enormes conquistas das massas. O que alguns sociólogos chamaram o “pacto neoliberal” consistiu precisamente em dividir as massas em setores privilegiados das classes médias e trabalhadores (especialmente nos países centrais), enquanto a maioria se afundava na desocupação e na extrema pobreza, fazendo-se nas periferias das grandes metrópoles, relegados a sobreviver mediante a assistência estatal. Ao mesmo tempo, avançava-se na restauração do capitalismo também nos estados operários burocratizados do leste da Europa, Rússia e China, onde não só se produziu um enorme retrocesso nas condições de vida das massas desses países, senão que também se afetou as massas do Ocidente, com a incorporação ao mercado mundial capitalista de um bilhão e setecentos milhões de novos trabalhadores e trabalhadoras, o que serviu para atacar ainda mais as condições de trabalho em todo o planeta.
E tudo isto se fez da mão das direções reformistas das organizações de massas, que foram cúmplices diretos ou aceitaram estes ataques sem dar a batalha, como os sindicatos, os Partidos Socialistas – muitos dos quais eram governo na Europa, quando impunham estes mesmos planos neoliberais e os Partidos Comunistas que passaram diretamente do lado da restauração capitalista nos ex-estados operários. Como já dicemos, setores das classes médias e das classes trabalhadoras, foram cooptadas, integrados ao consumismo que reproduziu uma ideologia individualista profundamente reacionária, enquanto milhões se afundavam na miséria.
Para sustentar o processo de reformas, evitando a irrupção dos movimentos de massas, a fragmentação social também teve seu correlato político: desde os organismos internacionais imperialistas se estabeleceram relações “frutíferas” para o “desenvolvimento sustentável”, com os movimentos sociais e suas organizações. Quando a maior parte do programa “neoliberal” já se havia implementado, o Banco Mundial priorizou o financiamento de programas sociais sob os lemas da participação e a transparência. As organizações não governamentais foram as executoras privilegiadas de seus projetos assistencialistas focalizados. O Banco Mundial como o resto das agências de financiamento, cumpriu, neste período, um papel político e ideológico muito importante em relação ao controle social.
Em um círculo perverso, as políticas neoliberais que desmantelavam o Estado e as prestações sociais, que empurravam milhões de pessoas ao desemprego e criavam novas condições de exploração baseadas na fragmentação e na precarização do trabalho em todo o mundo... também iam acompanhadas da assistência social como política de contenção, para evitar a emergência dos excluídos. Essas políticas neoliberais incluíram a “cooperação” com as organizações não governamentais para que fossem estas mãos “privadas” as que pusessem os remendos necessários para evitar o transbordamento. A cooptação alcançou cifras indiscutíveis: em mil novecentos e setenta, as ong’s dos países latinoamericanos receberam novecentos e quatorze milhões de dólares; em mil novecentos e oitenta, a cifra ascendeu a dois bilhões trezentos e sessenta e oito milhões de dólares e em mil novecentos e noventa e dois, o dinheiro destinado às ong’s se incrementou em mais de quinhentos por cento.
Isto que é um processo geral, também foi uma transformação importante para o feminismo. Ainda que soe paradoxo, durante o período de maior contra-ofensiva imperialista contra as massas, suas organizações e as conquistas herdadas de décadas anteriores, a agenda feminista se converteu, em grande medida, em política pública dos Estados, dos governos e das organizações interestatais, incluindo os organismos financeiros. O feminismo, como movimento radical que re-emergiu ao calor da luta de classes mundial do final dos ’60 e princípios dos ’70, teve o mérito de impor sentidos, alcançando legitimidade entre públicos mais amplos. Mas esta legitimidade também foi às custas, ao passo, de sua reconversão em uma pletora de organizações não governamentais, perdendo seu filo mais subversivo. O feminismo obteve reconhecimento a troca de integração. Legalidade em troca de abandono da radicalidade anterior. O clima resultante foi a desmoralização e despolitização do movimento. O feminismo passou de questionar as bases do modo de produção capitalista a supor que a democracia burguesa é o sistema no que se pode ir conseguindo, paulatinamente, maior equidade de gênero, através de algumas reformas. A institucionalização do movimento também gerou uma “tecnocracia” de gênero e a fragmentação que converteu as demandas das mulheres em demandas parcializadas de assistencialismo.
Porque assim funcionavam estes projetos para o desenvolvimento e a promoção de um “feminismo de direitos”, o que verdadeiramente sucedeu é que cresceu fenomenalmente a desigualdade e, sobre milhões de mulheres, descarregaram-se as consequências mais nefastas do ataque imperialista às massas do continente. Na América Latina aumentou velozmente o que se denomina a “feminização da força de trabalho”, onde – como já assinalamos – a crescente incorporação das mulheres ao mercado de trabalho foi às custas de uma maior precarização, com as piores condições e sem direito a se organizar. Durante este mesmo período, os antigos ataques (vejámenes) contra as mulheres, transformaram-se em parcos “negócios”. A abertura das fronteiras para o comércio internacional, os paraísos fiscais, a concentração de mulheres jovens desarraigadas em enormes cidades-industriais de fronteiras, o crescimento do tráfico de drogas e a corrupção, permitiram que o tráfico de mulheres para snuff, pornografia, escravismo sexual e prostituição se transformou em uma colossal indústria que alcança a quatro milhões de mulheres e dois milhões de meninas e meninos a cada ano, produzindo um lucro de trinta e dois bilhões de dólares para os proxenetas (entre cujas redes, não é demais esclarecer que, sempre se encontram políticos, empresários, forças repressivas, funcionários judiciais, religiosos etc).
Contra esta corrente que promoveu a institucionalização do movimento feminista, também surgiram grupos e correntes feministas que resistiram a esta tendência geral. Porque enquanto a maioria do feminismo se inclinou por uma perspectiva reformista, desenvolvida no marco institucional desenhado internacionalmente pela ONU; uma minoria se distanciou da disputa pelo poder do Estado, obrigada a relegar-se e autorelegando-se na criação de “contracultura” e “contravalores” opostos aos imperantes. Contra uma visão integrada do feminismo, a visão que – parafraseando a Umberto Ecco – poderíamos denominar apocalíptica, supôs que bastava lhe dar as costas ao poder existente para autoapoderar-nos, criando nossos próprios valores e nossa própria cultura na contracorrente do patriarcado. Isto também despolitizou a luta das mulheres por sua emancipação, redobrando-lhe exclusivamente no terreno da cultura e limitando o feminismo, em última instância, a pequenos círculos de “iniciadas”.
O sistema nos quer fechadas nesta falsa dicotomia: nos incorporamos ao Estado e suas instituições para reformar “desde dentro” o pouco que se pode, incorporando-nos a governos e regimes que se fundam, legitimam e reproduzem a ordem existente, ou melhor damos as costas às lutas onde se joga a relação de forças com as classes que exercem sua dominação através do Estado, sustentando que a única via de emanciapação é a auto-emancipação que se consegue quando se alcança a verdadeira consciência. O que, em certo sentido, era uma compreensível reação contra a institucionalização que havia absorvido as arestas mais revulsivas do movimento feminista, convertia-se prontamente em uma trava para o estabelecimento de grupos militantes, ativos, dispostos a avançar na construção de movimentos de mulheres verdadeiramente massivos, onde as demandas avançaram para a defesa de uma transformação radical, profunda, revolucionária da sociedade.
Como sair deste paradoxo? Isto é o que quero deixar aberto para o debate.
O que parecia um caminho que nos conduzia evolutiva e gradualmente a uma situação de maiores direitos, maior equidade e melhoras na vida das mulheres... desembocou nesta situação mundial de feminização da força de trabalho, feminização da pobreza, aumento inusitado da violência contra as mulheres...
Podemos manter a ilusão da integração que poderia sonhar o feminismo institucional? Aceitamos que se reduza ainda muito mais o círculo dos que podem viver criativamente a margem de milhões de seres humanos – em sua maioria mulheres – que vivem em um mundo que se afunda, cada vez mais, na barbárie? Então... Que faremos frente à crise que nos ameaça? Que rumos adotará o feminismo frente a solução de guerras, desemprego massivo, destruição do planeta e mais miséria que o capitalismo apresentará para sobreviver a si mesmo? Onde está escrito que a luta das mulheres tem que se reduzir, como diria um filósofo pós-moderno a “minimizar a crueldade”? Vamos nos colocar a perspectiva de uma nova sociedade, sem exploração nem opressão de nenhum tipo ou vamos eleger o caminho das modificações desta sociedade na que vivemos, para atenuar, ao sumo, alguns de seus mais brutais abusos?
Nunca é demais se remontar à Revolução Francesa de mil setecentos e oitenta e nove ou à Revolução Russa de mil novecentos e dezessete para demonstrar que frente aos grandes cataclismos sociais, políticos e econômicos, as mulheres seguem sendo os destacamentos de vanguarda que enfrentam as crises e as nefastas consequências que elas entranham para a vida cotidiana das massas. Já vimos lutar as mulheres do altiplano boliviano na Guerra da Água; as mulheres oaxaquenhas tomar literalmente o poder da comuna, organizando a resistência desde os meios de comunicação sob seu controle. As mulheres desempregadas na Argentina cortaram as estradas uma e mil vezes demandando trabalho genuíno e as trabalhadoras da têxtil Brukman puseram a produzir a empresa sob controle operário, resistindo ao desalojamento e à repressão, em plena crise nacional de 2001. Temos visto as feministas e mulheres em resistência de Honduras, durante meses, estar a frente da luta contra os golpistas e, nas colônias mais pobres de Tegucigalpa, vimos as mulheres organizando o território e a comunidade para resistir à repressão do exército e dos capangas.
Nesses novos ímpetos de milhões de mulheres trabalhadoras e dos setores populares radicam as forças das que dependerá o futuro do movimento de mulheres da América Latina. As feministas que sonham ainda com uma sociedade liberada de toda forma de opressão, não só não pode dar as costas a estes setores de milhões de mulheres do continente que emergiram à vida política nos últimos anos, senão que tem o dever de dirigir-se a elas, de se nutrir de suas lutas e colaborar com seus triunfos. Por isso consideramos que só desde a perspectiva de atacar o coração do capitalismo é que a demanda inclusive dos direitos democráticos mais elementares encerra um potencial subversivo. Por isso, lutamos para arrancar a este sistema todos os direitos dos que as mulheres temos sido privadas ao longo da história; mas o fazemos desde a perspectiva e com a estratégia do socialismo.
Devemos recuperar essa estratégia agora quando o sistema capitalista, nesta nova investida contra as maiorias exploradas e oprimidas do planeta (maiorias feminizadas), não deixa mais lugar para a ilusão da integração que poderia sonhar o feminismo institucional e reduz ainda muito mais o círculo de quem pode viver criativamente à margem de uma sociedade que se afunda, cada vez mais, na barbárie.
Para terminar eu quero trazer à memória uma mulher socialista norte-americana –Louise Kneeland- que, em 1914, disse: “O socialista que não é feminista carece de amplitude. Mais quem é feminista e não é socialista carece de estratégia.” Como se sucedeu outras vezes na história, confiamos em que serão novamente as mulheres mais exploradas e oprimidas de nosso continente as que impulsionarão o surgimento de um novo feminismo socialista que ainda espera ver a luz. “Socialismo ou barbárie”, nos disse Rosa Luxemburgo. E hoje essa premissa adquire uma vigência inusitada... especialmente para as mulheres... para as que não pedimos, senão exigimos, nosso direito ao pão, mas também às rosas.
Muito obrigada.
* Andrea D'Atri fundou a agrupação de mulheres Pan y Rosas na Argentina, que hoje está presente também no Brasil, México, Chile e Bolívia. Escreveu o livro "Pão e Rosas. Identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo" é compiladora do livro "Lutadoras. Histórias de mulheres que fizeram história". É dirigente do Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS).
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