quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O exame Papanicolau, a decadência da saúde pública e a luta pelos nossos direitos

Nos marcos da vergonhosa crise de assistência médica e frente a todo o descaso do governo para com as condições de vida da população pobre e, em especial da mulher, e levando em consideração a importante campanha da Secretaria de Mulheres do Sintusp para colocar fim à fila de mais de 1.000 mulheres aguardando para ter acesso ao exame do papanicolau na USP o site Palavra Operária entrevistou Gilson Dantas, médico, setentista e doutor em sociologia pela Universidade de Brasília, e procuramos levantar questões sobre a importância de exames como o Papanicolau para a saúde da mulher e também sobre o descaso do Estado burguês sobre a assistência básica à saúde e os processos de saúde e doença. 




Qual a importância do exame de colo de útero, o Papanicolau, para a saúde da mulher?
Gilson Dantas: Para a mulher de vida sexualmente ativa e também na faixa aproximada dos 25 aos 65 anos, este exame, que é simples, rápido e barato, é o mais indicado para surpreender uma inflamação, uma infecção ou até uma doença sexualmente transmissível no início; também pode descobrir algum foco no colo uterino onde está se iniciando um processo pré-cancerígeno ou mesmo um câncer inicial. Pode descobrir uma verruga vaginal, uma candidíase, enfim é um bom exame de rotina, para ser feito anualmente, no caso de mulheres mais sadias, ou de 3 em 3 anos em outros casos, e que pode surpreender no início uma enfermidade ou até uma inflamação que não está dando, por exemplo, sintomas ainda. Uma doença que não é “visível” passa a ser visível com esse exame de citologia do colo do útero. Essa é sua importância. Em outras palavras, este exame elementar, que integra a chamada “atenção à saúde básica”, é um direito mais do que óbvio e natural de toda mulher que dele necessita. Jamais poderia ser negado ou dificultado. Ele pode, vale sempre repetir, dentre outras coisas, descobrir um câncer de colo uterino (chamado de câncer cervical) quando ele está mal começando. Como é um câncer que demora dez anos para se desenvolver, sua descoberta quando ele ainda é pré-câncer, permite mudar estilo de vida, alimentação, higiene e, dessa forma, fazer com que em dois anos, aquele foco que poderia se desenvolver como câncer, seja completamente curado. E lembremos, só para dar um número, que segundo dados do próprio governo (do INCA, Instituto Nacional do Câncer), em 2011 tivemos 15 mil casos de câncer uterino, com 5 mil mortes; e este câncer é o 4º que mais mata mulheres com câncer no Brasil; em ordem de frequência, ele é o 3º mais frequente (os outros dois são mama e intestino). Ora, todos nós sabemos que a mulher rica tem total acesso a qualquer tipo de exame e à qualidade de vida; a conclusão portanto é que negar o Papanicolau é escolher QUEM vai morrer de câncer uterino. É simples assim. E cruel assim: tanto que um estudioso do assunto procurou traçar o perfil de qual é o tipo de mulher que morre desse tipo de câncer e o que foi que ele descobriu? Que quem mais morre dele é a mulher não-branca, de menos escolaridade, mais pobre, e também a mais cheia de filhos, com ênfase na mulher da zona rural. É claro que esses estudiosos, de resto bem pagos, não vão se indignar com esse apartheid organizado, com essa crônica de um crime anunciado – executado contra as mulheres pobres, negras e de periferia – mas penso que é nosso dever nos indignarmos e organizarmos a luta contra isso, no sentido de mudar esse “destino” que os diferentes governos burgueses organizam contra nós, cotidianamente.
Então o Papanicolau vem a ser um exame preventivo, a mais importante medida de prevenção do câncer de colo de útero?
Gilson Dantas: Em primeiro lugar é uma brutal irresponsabilidade do governo não oferecer este exame para toda mulher, com rapidez, gratuito e em todo bairro. Ele dá uma ideia de como está a saúde da parede vaginal e uterina, se tem inflamação ou alguma alteração de qualquer tipo, verruga, candidíase etc. Mas prevenção mesma, mais profunda, tem que ser entendida de outra forma. Pense comigo: se uma população é obrigada a morar no meio do esgoto e pega muita verminose, qual é a verdadeira prevenção: o exame de fezes, para descobrir que você tem a parasitose ou eliminar o esgoto? Você vai fazer o exame, vai tomar o medicamento e vai voltar a pegar o verme ao pisar de novo no esgoto. Esse é o xis da questão. Portanto, é certo que o Papanicolau é aquela coisa imediata, um direito natural, como tantos outros, e que são sistematicamente negados ao povo pobre. Essa é a primeira coisa. A outra é que nem toda mulher desenvolve câncer uterino. Ele não é um problema de “qualquer mulher”. Compare aquelas que moram no Morumbi ou Jardins com aquelas que vivem em Carapicuíba. A taxa de câncer é brutalmente diferente. A verdadeira prevenção tem a ver com as condições do bairro, transformar as condições de vida e de trabalho que o governo degrada ou deixa degradar todos os dias enquanto suga nosso sangue, nosso suor para gerar sua riqueza e ainda por cima arranca impostos e tarifas públicas caras sem retribuir em serviços. Grandes epidemias e doenças foram vencidas no século XIX através da urbanização, da coleta de esgoto, da oferta de água e outros meios de vida, muito mais por essa via do que pela medicina em si mesma. Portanto cuidado com o discurso do governo: ele adora vender vacinas, tratamentos caros e NUNCA discutir como se origina o câncer e outras doenças. Por exemplo, por que 90% das mulheres têm contato alguma vez na vida com o HPV – um vírus comum – e apenas algumas delas desenvolvem câncer? O vírus está ali, passa por ali, mas somente algumas irão adoecer por conta dele. A resposta é que a causa do câncer uterino nunca foi e nem é o vírus mas sim falta de boa alimentação, a conquista de menos horas de trabalho, melhor higiene, melhores condições de vida, mais lazer. No caso do povo pobre: o fim da exploração do trabalho. O controle da própria atenção médica e da vida, escola, creches públicas e urbanização do bairro, que tem que ser obra dos próprios trabalhadores e suas famílias. Por isso junto com o Papanicolau temos que arrancar todos os nossos direitos à vida. Total proteção à saúde da mulher para sua vida sexual, reprodutiva e saúde em geral terá que ser conquista dos próprios trabalhadores.
Nós temos uma presidente mulher, governos que se sucedem e nunca a saúde da mulher e nem da classe trabalhadora pobre é prioridade. Como você vê essa questão?
Gilson Dantas: Veja que nós estamos diante de um problema de classe. Ter ou não ter acesso ao Papanicolau, no Brasil, é um problema de classe. Antes de ser presidente mulher, ou presidente petista, tucano, peemedebista, todos eles são governos que defendem os interesses da classe que vive do nosso trabalho. Sua prioridade são os grandes banqueiros e o empresariado. São eles que financiam as campanhas daqueles. A nossa resposta também tem que ser de classe. Temos que tomar nosso destino nas nossas mãos. De novo vamos ao exemplo do Papanicolau: é um exame muito necessário já que antes da mulher ter os sintomas de um câncer instalado, que são sangramento, dor após o sexo, o Papanicolau permite descobrir a doença; pois bem, trata-se de um exame pouco invasivo, barato, custaria menos de 50, 70 reais, portanto de baixa tecnologia; o governo poderia contratar pessoas do próprio bairro, em massa, treiná-las para aprender a colher a amostra (aprender o jeito de colher, de preparar a lâmina, reconhecer as células no microscópio, montar equipes, estruturas e pronto, em um mês nenhuma mulher em nenhum bairro, ficaria sem o seu exame. E perto de casa, não é necessário estrutura de hospital. Treinamento, microscópios, iodo e vinagre, espátulas, uniforme, luvas algumas coisas mais e não tem mistério, estaria tudo resolvido e barato. Por que não é? Porque não é prioridade de governo. Mas e as 15 mil mortes em 2011? Ué, e quem disse que o governo vai se importar se forem 20 ou 40 mil? São mulheres pobres! A madame rica se cuida e se trata. Quanto ao governo, dos ricos, só está preocupado com as aparências, o ministério da saúde é aparência, os postos de saúde são aparência, o INCA é aparência (aliás, o INCA outro dia fazia campanha de coleta de chinelos e arroz para doar para as pacientes com câncer, imagine só onde anda a prioridade!!). O ministério da Saúde tem um orçamento que não chega a meio bilhão de reais, mas esse mesmo governo paga juros todo dia de uma dívida do tamanho do PIB, isto é, assumiu dívida de 2,2 trilhões de reais com os banqueiros. Para os banqueiros, trilhões, para a saúde nem meio bilhão... Compare os números e avalie você mesmo se saúde é prioridade. Os leitos do SUS, que por si mesmos já são horrorosos, crescem menos que a população. Mas não é só leitos e nem apenas falta de Papanicolau: quem disse que água, transportes, mobilidade urbana, emprego, qualidade de vida para o povo pobre é prioridade para Dilma ou para Alckmin? Ou para Aécio? Alckmin deixou a água entrar em colapso em São Paulo, enganou a opinião pública o quanto pôde, apenas preocupado com sua reeleição! Dilma é mulher e onde está o Papanicolau para a mulher brasileira? São governos do blábláblá, de jogo de cena com programas do tipo “minha mulher minha vida”, mas a verdade definitiva é que temos que tomar nosso destino nas nossas mãos e levantar um movimento a partir do bairro, dos trabalhadores da saúde, da aliança combativa bairro-juventude trabalhadora e estudantil para impor nossos direitos mais elementares e naturais – como o da água, da assistência básica de saúde – arrebatados por governos de classe cujos interesse jamais será o Papanicolau, nem creches e nem atenção integral à saúde da mulher pobre e trabalhadora.


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