No mês de novembro o grupo de mulheres Pão e Rosas foi entrevistado por um grupo de
estudantes de Psicologia da Universidade Newton Paiva, de Belo Horizonte, para
um trabalho com o tema "Aborto no Brasil: lei e dados", como parte da disciplina
Psicologia e Sociedade, que trata de temas contemporâneos e polêmicos, ministrada
pelo prof. Alessandro Santos. Após essa importante iniciativa, buscamos também entrevistar
as estudantes do grupo e abaixo reproduzimos trechos dessa entrevista que
fizemos com as estudantes Dominique, Luiza, Marcela e Paloma, além do prof.
Alessandro, e o vídeo resultado do trabalho feito pelo grupo.
Pão e Rosas: Por que vocês escolheram o tema do direito ao aborto?
Dominique: Quando a gente estudou o direito da mulher com o Prof.
Alessandro, nosso orientador, ficou muito visível o quanto a mulher é invisível
na sociedade, como não é colocada como sujeito, as leis que giram em torno do
direito da mulher não tem visibilidade nenhuma, [o aborto] não é pautado de
forma nenhuma. Quando foram lançados os temas que são socialmente polêmicos, o
que mais encaixou para nós, frente aos direitos das mulheres, foi o do aborto.
Queríamos saber por que não se problematizava, por que não se fala nisso e as
leis no Brasil só retrocedem em relação aos direitos da mulher. E por ser
mulher, por querer discutir o tema, saber quem é a mulher que aborta, quantas
mulheres abortam, se elas estão morrendo ou não, o que isso causa na vida de
uma mulher, querer saber aqui no Brasil o que devemos discutir sobre isso.
Luiza: É um tema que é pouco falado até na nossa área acadêmica. E
até para nós mesmas, antes de fazer esse trabalho não tínhamos essas
informações, descobrimos coisas que nem imaginávamos e pudemos passar para os
colegas. O aborto é uma realidade e nós, como futuras psicólogas, precisamos
estar dentro desse assunto, pois vamos tratar mulheres que abortam e precisamos
saber tudo que envolve isso.
D: (...) Vimos o choque delas [as meninas da sala] e nosso também,
com os dados, e de ver que países vizinhos descriminalizaram o aborto e isso
foi totalmente contra o senso comum que se tem no Brasil, pois houve diminuição
dos casos de aborto e das mortes.
PeR: Vocês fizeram várias pesquisas sobre como o direito ao aborto é
encarado no Brasil e no mundo. O que mais chamou atenção de vocês?
Marcela: O que mais me chamou atenção é o perfil da mulher que mais
aborta, que são mulheres casadas, que já possuem um filho e tem estrutura e
condição financeira para criar um filho, frequentam instituições religiosas.
L: Um dado que alarmou a gente foi a quantidade de mulheres que
praticam o aborto, porque pensamos que é algo bem distante, mas não é. A
quantidade é enorme e a gente não imagina os “contras” que acontecem, como as
mortes. Não á algo que colocam pra gente, só colocam que a mulher que aborta é
criminosa, mas não falam que a quinta causa de morte materna no Brasil é o
aborto. Vi uma reportagem da Fiocruz que fala em quase 3 milhões de abortos em
2005. É assustador, é alarmante, ninguém tem conhecimento e é algo tão comum,
que ocorre com pessoas próximas a gente.
D: O que mais me alarmou foi saber que as mulheres estão morrendo.
É a mulher pobre e negra que morre no Brasil. Além das outras complicações que
trazem o aborto clandestino, elas ficam com a possibilidade de não ter filhos.
Porque não é a mulher que nunca vai querer ter filho que aborta, uma grande
parte já tem filhos, ou querem ter depois e saber que isso leva mulheres à
morte, ver que é um problema de saúde pública mesmo, é o mais alarmante. A
mídia coloca de maneira sensacionalista, pouco problematiza e culpabiliza
demais a mulher, não coloca para a grande massa que as mulheres morrem,
adoecem, ficam com consequências psicológicas.
PeR: Qual foi a receptividade do trabalho, ao longo das pesquisas,
entrevistas, e qual retorno vocês tiveram, após a apresentação?
M: A gente viu muito interesse das pessoas, porque quase ninguém
sabe o que acontece. Tem um primeiro pré-julgamento, mas como era uma bancada e
a gente estudou para isso, as pessoas chegaram perguntando como funcionava, o
que pensávamos sobre isso. Se fosse uma conversa em outro ambiente, tenho
certeza que a resposta dessas pessoas seria de julgamento, falar que tem que
ser proibido mesmo. Como estávamos preparadas, conseguimos mostrar o outro
lado, o que acontece de verdade, os fatos.
D: Ao expor os dados, eu expus que foi impossível pra gente ficar
neutras frente ao tema da legalização. (...) Coloquei que éramos a favor da
legalização do aborto no Brasil, para todas, em todos os casos. (...) Foram
reações adversas, pessoas que se emocionaram, outras se afastaram, perguntando
se somos a favor ou não. É a maior questão que fica, se somos a favor ou não. É
o que a doutrina religiosa coloca, que se é favor do aborto é contra a vida, e
é isso que as pessoas querem saber.
PeR: O que mudou na visão de vocês, após esse trabalho, a respeito da
luta pela legalização do aborto?
L: Vou ser bem sincera, antes de fazer esse trabalho eu era contra
a legalização. (...) Depois que fizemos o trabalho, fiquei muito impressionada
com os casos, vi que é um problema de saúde pública, e o que causa nas mulheres
essa clandestinidade. Isso me assustou muito, são muitas mulheres que morrem. Hoje sou a favor da legalização do aborto, e
com a implementação de educação sexual, como a Flávia colocou na entrevista que
deu pra gente. (...) Hoje eu penso que é um problema de saúde pública, e nada
mais justo do que ter uma assistência para quem quer fazer o procedimento, que
tenha acompanhamento psicológico, como no Uruguai, e que as mulheres tomem suas
decisões em cima do que querem, o que querem para sua vida e seu corpo. Mas que
parem de morrer por causa disso! E que seja implementada a educação sexual, não
só por causa do aborto, mas deve ser discutida na vida das pessoas, desde
sempre.
D: O que mudou para mim é a questão da problematização do aborto. A
gente precisa problematizar isso, colocar as questões atreladas ao aborto, as
leis, políticas públicas, educação sexual nas escolas, desde o início da vida.
A problematização vai trazer isso, e não só a legalização, não é só legalizar o
aborto e deixar ver como fica. (....) Acho que falando mais sobre isso, na
mídia, nas redes sociais, meios de comunicação, em casa, quanto mais
problematizar, mais opções teremos para sair dessa situação que estamos. São
850mil abortos por ano, as mulheres estão morrendo, a sociedade precisa saber
desses números e dessas mortes.
PeR: Como vocês chegaram até o Pão e Rosas?
D: No início do trabalho, eu pensei em conversar com alguma
organização de mulheres, que estão mais “afiadas” no tema, algum grupo
acessível, mais próximo, para nos orientar. O Prof Alessandro, sem nem
pestanejar, falou do Pão e Rosas. Entramos em contato, e foi muito legal conhecer
uma organização que não sabíamos que existia, o que era o Pão e Rosas, saber
que tem núcleos ao redor do mundo e que tem um na UFMG, aqui tão próximo da
gente. Muito bom saber que vocês existem e tratam desses temas, nos ajudou
muito.
PeR: Alessandro, fale um pouco da sua preocupação com a proposta desse
trabalho e sobre o excelente resultado mostrado pelo grupo.
Alessandro: As meninas transmitiram o trabalho de um jeito muito
legal. Eu dizia em sala de aula que o brasileiro tem o hábito de achar que sabe
tudo de tudo. A leitura que faço é que ele sabe muito pouco sobre tudo que ele
se aventura a falar. Sobre futebol, eleições, corrupção, aborto, direito,
política, tem opinião sobre tudo. Mas faz toda diferença quando a gente faz um
movimento. É a primeira vez que essa disciplina é oferecida, e eu tentei levar
para dentro de uma disciplina uma série de temáticas que julgo importantes e
que são pouco discutidas na universidade, com amigos, nos bares. Inclusive
sobre o aborto, embora seja uma questão muito comum. (...) As meninas apontaram
a questão da saúde pública, acho que é um eixo. Queria destacar as mutilações,
a série de sequelas, de rótulos, de estigmas. Temos que pensar também na
questão do corpo, a questão de gênero, de identidade, os problemas éticos,
religiosos, filosóficos. (...) Eu avalio que é preciso que a universidade possa
pautar esse tema, a universidade tem responsabilidade nessa discussão.
Precisamos pensar na noção de direito, no acesso, na saúde, na possibilidade de
uma pessoa ter autonomia nas escolhas que faz e o que faz com o próprio corpo.
Precisamos pensar no papel do Estado, no controle do Estado, na segregação
social, nos processos de criminalização em que nos encontramos. O que me chamou
atenção [nessa disciplina] é que o grupo inteiro foi apontando uma mudança, que
me pareceu muito interessante. (...) E aí, o que está em jogo não é
necessariamente se é contra ou a favor, mas a abertura para a discussão e
formar uma opinião, para sair desse lugar do senso comum ao qual somos convocados
o tempo todo, mas não podemos responder desse lugar. Primeiro, pelo lugar em
que estamos, que é a universidade. Segundo, porque somos responsáveis por ecoar
e ampliar essa discussão, que é essencial, pois não é de poucos casos. (...) No
caso do aborto, não é um problema de uma ou duas mulheres, mas de milhões de
mulheres, um problema de um país. Esse tema não pode ser discutido só pelas
mulheres. É preciso que as mulheres discutam esse tema, mas os homens também
precisam se responsabilizar por isso. Saio positivamente impactado desse
semestre, escutar as meninas do grupo é precioso, pois mostra um movimento. E
eu entendo que é pra isso que serve a universidade, para pensar se as coisas
são mesmo como devem ser. O processo todo trouxe uma problematização
importante.
D: Trouxemos coisas que mudaram nossa visão, mas eu trouxe como
pessoa, cidadã e sujeito na sociedade. Queria colocar o quanto me impactou
enquanto psicóloga em formação. Esse tema precisa ser discutido, mas não só
sobre o aborto. Esse tema abriu minha cabeça sobre o que eu vou fazer na minha
profissão. Sobre o direito da mulher, a visibilidade que precisamos ter, nossa
liberdade, enquanto sujeito frente a esses temas. Agora eu olho para frente e
quero buscar fazer agora com que isso mude lá na frente. Na academia agora eu
vou buscar caminhos que me levem a mudar essa realidade, fazer com que pelo
menos no país em que eu vivo, isso tudo seja tratado de forma diferente, que
tenha mais visão.
***
Vídeo feito pelo grupo:
[https://www.youtube.com/watch?v=B2PkDwScGxo&app=desktop]
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