Por Andrea D'Atri e Laura Liff*
A sintomática
emergência política dos setores mais oprimidos questiona a ideia de emancipação
como conquista progressiva e acumulativa de direitos (tal como propõe um
feminismo partidário, exclusivamente, aquele da estratégia do lobby parlamentar
para a “ampliação da cidadania”) e põe em xeque a perspectiva de “democratizar
radicalmente a democracia” (como propõe o pós-feminismo, ou feminismo
pós-moderno), que se mostra inviável quando a crise econômica, social e política
segue desenvolvendo-se.
Com a crise,
torna-se evidente que cada direito obtido não é uma conquista perene, mas que
está sujeita a cortes e ajustes que imponham os governos e instituições
financeiras internacionais, como também – quando não se trata de um problema
estritamente econômico – aos vai-e-vens das relações de forças, já que a crise
agudiza a polarização social e isso faz resurgir com virulência os setores mais
reacionários que expressam sua xenofobia, homofobia, misoginia, etc. Não são
poucos os governos que, por trás de um discurso supostamente “progressista”,
escondem compromissos com setores direitistas e concessões a determinados
grupos religiosos, reforçando o controle social com a retirada de liberdades
democráticas.
Na população
que é lançada pelo capital a uma vida miserável, não há “igualdade de gênero”:
70% são mulheres e meninas. Mas a desigualdade não se encontra somente nos
índices econômicos. Sua discriminação – como a que se exerce também contra
imigrantes e pessoas não heterossexuais – contrasta com os direitos adquiridos
nas últimas décadas: repressão, violação e assassinato de mulheres no Egito e
outros países da África e Oriente Médio; a escalada xenófoba na Europa; as mobilizações
multitudinárias, encabeçadas pela Igreja Católica, grupos de cristãos
evangélicos e políticos conservadores, contra os projetos para legalizar o
matrimônio igualitário [1]. O capitalismo ensina, com essas lições brutais, que
a emancipação feminina assim como de outros grupos sociais subjulgados, é uma
quimera enquanto subsistir este regime social, político e econômico. Se esta é
a perspectiva, o que deve levantar o feminismo, enquanto movimento emancipador
que denuncia a desigualdade social, política e cultural das mulheres sob domínio
patriarcal? E o que tem a dizer o marxismo revolucionário?
Paradoxos da restauração conservadora: mais direitos e
maiores humilhações
Neste ultimo século, a vida das
mulheres mudou de uma maneira que não é comparável às mudanças relativamente
menores que experimentou a vida dos homens no mesmo período. Mas há outros
dados que contrastam brutalmente com essa imagem de “progresso sem
contradições”, até uma maior igualdade de gênero, que é própria dos países
imperialistas e das semicolônias prósperas. Como entender dentro deste
horizonte, que a cada ano entre 1 milhão e meio e 3 milhões de mulheres e
meninas são vítimas da violência machista e que a prostituição se transformou
numa indústria de grandes proporções e enorme rentabilidade, o que por sua vez
permitiu desenvolver expansivamente as redes de tráfico?
Além disso, mundialmente, apesar dos
enormes avanços científicos e tecnológicos, morrem 500 mil mulheres anualmente,
por complicações na gravidez e no parto, enquanto 500 mulheres morrem, por dia,
em decorrência de abortos clandestinos. No mesmo período, aumentou
exponencialmente a “feminização” da força de trabalho, especialmente na América
Latina, às custas de uma maior precarização[2]. Por isso, diferente de outras
crises mundiais, esta que estamos atravessando encontra a classe operária com
uma força de trabalho que representa mais de 40% do emprego global. 50,5%
dessas trabalhadoras estão precarizadas e, pela primeira vez na história, a
taxa de emprego urbano entre as mulheres é levemente superior à taxa de emprego
rural [3].
É gritante o contraste entre os
direitos adquiridos – incluindo a legitimidade que alcançou, nas últimas
décadas, o conceito de “igualdade de gênero” - e o desolador panorama destas
estatísticas. Foi buscando uma explicação para esta contradição, que a
feminista norte-americana Nancy Fraser expressou sua insatisfação com a tese de
que “a capacidade relativa do movimento (feminista) para transformar a cultura,
contrasta de maneira aguda com sua incapacidade relativa para transformar as
instituições” [4]. E a partir desse balanço impróprio (que adjudica ao
feminismo um triunfo cultural e certo
fracasso institucional), Fraser desafia com uma nova hipótese, perguntando-se
se por acaso o que aconteceu é que “as mudanças culturais impulsionadas pela
segunda onda, saudáveis em si mesmas, serviram para legitimar uma transformação
estrutural da sociedade capitalista que avança diretamente contra as visões
feministas de uma sociedade justa”[5]. A autora se permite suspeitar que o
feminismo e o neoliberalismo se tornaram afinados uma ao outro, questionando a
cooptação do primeiro e a sua subordinação à agenda do Banco Mundial e a outros
órgãos internacionais.
A suspeita parece certa. Por acaso o feminismo só pode
nos propor uma restrita emancipação, limitada a setores minoritários que gozam
de alguns direitos democráticos, em determinados países, às custas da extensão de brutais situações de humilhação contra a imensa maioria das mulheres em escala
mundial? Esta situação paradoxal, que as décadas da restauração conservadora
nos legaram, não pode ser explicada senão reportando-se à correlação de forças
que ficou colocada com a radicalização iniciada nos 60. Desde o fim dessa
década até meados dos anos 80, ocorreu um ascenso revolucionário de massas que
questionou não somente a ordem capitalista, mas também, o controle férreo da
burocracia estalinista nos Estados Operários do Leste da Europa.
No início deste extenso processo de
radicalização, que atravessou os continentes e colocou em xeque o equilíbrio
pactuado entre o imperialismo e a burocracia estalinista ao fim da 2ª Guerra
Mundial, também deu lugar ao florescimento de outros questionamentos radicais
sobre a vida cotidiana: o movimento feminista se recriou sob novas premissas,
originando o que ficou conhecido como “a segunda onda”, o movimento pela
libertação sexual saiu do “armário” imposto pela repressão, irrompendo na cena
mundial com as barricadas de Stonewall e a visibilidade “orgulhosa”; a
população afro-americana também emergiu, gritando sua rebeldia e hasteando a
bandeira do blackpower, enquanto os campi universitários se convertiam
em ambientes de deliberação política e filosófica, experimentação musical e
lisérgica, ao mesmo tempo em que a família tradicional, o par heterossexual
monogâmico e todas as relações intersubjetivas eram questionados pelo amor
livre e a vida comunitária.
Mas a contraofensiva imperialista –
conhecida como “neoliberalismo” – foi descarregada sobre as massas
desferindo-lhes uma derrota não apenas política, mas cultural. Diferente das
outras guerras mundiais, a recuperação parcial que o sistema capitalista
conseguiu não se baseou na destruição das forças produtivas mediante o aparato
bélico. Ainda que houvesse “derrotas físicas”, a base desta “nova ordem” foi,
essencialmente, a descomunal fragmentação da classe trabalhadora. Frente a este
ataque imperialista às massas e às suas conquistas, as próprias organizações
criadas pela classe operária (desde os partidos como a socialdemocracia ou os
PC, até os sindicatos e os estados operários burocratizados) atuaram como
agentes da implementação dessas mesmas medidas que reconfiguraram o domínio do
capital [6]. O modelo do livre mercado e o pensamento único lideraram este
período de restauração, caracterizado pelo desvio e a canalização do ascenso de
massas através da crescimento dos regimes democráticos capitalistas, abrindo o
caminho para medidas econômicas, sociais
e políticas que liquidaram grande parte das conquistas obtidas durante o
período anterior.
Este processo se estendeu no tempo e
no espaço de uma maneira nunca antes vista. Ainda que “mais extensas geograficamente,
se constituíram como democracias degradadas tendo como base fundamental as
classes médias urbanas e até setores privilegiados da classe operária (especialmente nos países centrais), que
tiveram a porta aberta à extensão do consumo. A desideologização do discurso
político sob a combinação da exaltação do indivíduo e a sua realização no
consumo (“consumismo”) foram as bases
deste 'novo pacto' muito mais elitista que aquele do pós guerra, que conviveu
com o aumento da exploração e degradação social da maioria da classe trabalhadora,
junto com altos índices de desemprego e a proliferação exponencial da pobreza” [7] (as
ênfases no texto são nossas)
Enquanto os setores mais altos da
classe trabalhadora e as classes médias eram incorporados ao festim consumista,
as grandes maiorias eram lançadas ao desemprego crônico, à aglomeração nas
favelas e à marginalidade social, política e cultural. O individualismo também
permeou a cultura de massas. Para essa “integração” que estabeleceu um “novo
pacto” entre as classes foi necessário incorporar, rebaixando, na agenda das
políticas públicas, muitas das demandas democráticas levantadas pelos movimentos
sociais, inclusive o feminismo.
Feminismo
na democracia: da insubordinação à institucionalização
O divórcio entre a classe operária,
por um lado, com suas direções encabeçando a entrega de conquistas ou, no
melhor dos casos, resistindo a partir de um sindicalismo vulgar aos ataques
neoliberais e, por outro, os movimentos sociais – que, frente à derrota,
abandonaram a perspectiva de uma transformação radical do sistema
global – se consumou finalmente, depois de uma longa história de barricadas
compartilhadas. “Marginalizado
por si mesmo” ou integrado às batalhas pelo “reconhecimento”
devido no espaço do “Estado democrático”, o feminismo abandonou a luta contra a
ordem social e moral que o capital impõe e que descarrega as maiores misérias e
ofensas contra as mulheres. Ao contrário, a ausência de um horizonte
revolucionário e o papel cumprido por suas próprias direções no momento do
maior ataque perpetrado pelo capital, afundou a classe operária em um
corporativismo economicista. Reformismo de duas caras: a política feminista só
se limitou a pressionar através do lobby
às instituições do Estado para conseguir uma “ampliação de cidadania” que,
antes cedo do que tarde, está se transformando em papel molhado frente à crise
em curso; enquanto às mulheres da classe trabalhadora se designa, no melhor dos
casos, somente o “direito” ao salário, deixando nas mãos da casta política
burguesa o manejo dos assuntos públicos.
As mulheres que almejavam sua
emancipação não tiveram, durante estas décadas de profunda restauração
conservadora, um modelo a seguir nos países que abarcava o denominado
“socialismo real”, como havia sido no começo do século XX. Ali somente
encontravam a confirmação de que toda tentativa de opor-se à dominação
existente, poderia gerar novas e monstruosas formas de dominação e exclusão. O
estalinismo havia se encarregado de manchar as bandeiras libertárias do
bolchevismo para a emancipação feminina e transformá-las em seu inverso:
reestabeleceu a ordem familiar promovendo o papel das mulheres como esposas,
mães e donas de casa, revogou o direito ao aborto, criminalizou a prostituição,
como nos tempos do czarismo; reduziu drasticamente ou diretamente eliminou as
políticas públicas de criação de lavanderias, restaurantes e moradias
comunitárias e liquidou todos os órgãos partidários femininos. Estas foram
somente algumas das medidas com as quais a burocracia destruiu e reverteu os
pequenos, porém audazes, passos dados pela Revolução Russa de 1917. Junto a
cooptação e à integração ao regime capitalista, avançou-se em direitos
democráticos elementares e se transformou a agenda feminista – antes elaborada
somente por alguns setores de vanguarda – em “senso comum” de massas. Mas a
radicalidade do feminismo da alvorada da “segunda onda” foi engolida pelo sistema.
Sua aposta subversiva foi desandada no caminho em que transitou “da rua ao
palácio”, da transformação social radical à transgressão simbólica resistente.
Entre a extensão inusitada do
consumo para amplos setores de massas, a exaltação do individualismo como valor
social e a conversão dos movimentos sociais em pedreiras de tecnocratas para
abastecer de pessoal capacitado as agências de desenvolvimento, o feminismo
igualitarista perdeu seu caráter crítico. Depois, o feminismo da diferença e o feminismo
pós-moderno questionaram, relativamente, essa conciliação.
Mas a adaptação a uma época na qual a
revolução se distanciava do horizonte, com uma classe operária submersa num
atraso político, a crise de subjetividade sem precedentes e a desmoralização
provocada pela identificação do estalinismo com o “socialismo”, também tiveram
seu correlato nos novos fundamentos teóricos feministas e feministas
pós-modernos. Suas respostas, longe de atacarem o coração do problema,
retomando as críticas mais radicais com as quais o feminismo havia conseguido
apontar à aliança “capital-patriarcado”, estabeleceram a ideia de uma
emancipação individual, enganosamente assimilada às possibilidades de consumo e
apropriação – transformação subjetiva do próprio corpo.
Apontamentos para um debate
Esta reconfiguração da situação das
mulheres, com novos direitos e vítimas de maiores danos, junto a uma nova
composição de gênero da força de trabalho provocada pelas transformações que
ocorreram nas últimas décadas, obriga-nos a reatualizar o debate entre
feminismo e marxismo sobre o caráter da relação entre capitalismo e
patriarcado, o agente da emancipação e a questão da hegemonia. Está colocada a
hipótese do ressurgimento de um feminismo que não se autossatisfaça no refúgio
intimista da libertação individual e se coloque num horizonte de crítica
radical anticapitalista? Isso implica não somente o combate contra as variantes
reformistas que propunham a inclusão, ainda quando o fazem sob as labirínticas
formas de uma charada pós-moderna, mas também, recuperando – contra todo
reducionismo economicista ou politicismo oportunista funcionais àquele
reformismo – as melhores tradições da história do marxismo revolucionário na
luta contra a opressão da mulher.
*Texto originalmente publicado na Revista "Ideas de Izquierda" impulsionada pelo Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) da Argentina e independentes.
[1]
Em Paris, centenas de milhares de pessoas marcham contra a aprovação do
casamento igualitário. Na manifestação, liderada por personalidades da direita
e da ultradireita francesa, se ouvia contra o governo de Hollande a frase: “Não
toque no matrimônio, ocupe-se do desemprego”. Em 2008, na Califórnia, grupos
direitistas – como a organização Project Marriage (Projeto Casamento) –
promoveram a emenda constitucional denominada “Limitar o matrimônio”. Algo
parecido aconteceu no Estado Espanhol, onde o PP e a Igreja encabeçaram as
mobilizações contra o casamento gay. Recentemente, no Brasil, milhares
participaram na “Marcha pra Jesus”, uma manifestação de cristãos evangélicos
liderados pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados que aprovou um projeto de lei para que as faculdades de psicologia
considerem a homossexualidade como uma doença e estabeleçam seu tratamento.
[2] Nas
3.000 zonas francas que há no mundo
trabalham mais de 40 milhões de pessoas, sem nenhum direito, mas 80% são
mulheres que tem entre 14 e 28 anos.
[3] OIT, Informes 2011 e 2012.
[4] Nancy Fraser, “El feminismo, el capitalismo y
la astucia de la historia”, New Left
Review 56, Madrid, 2009.
[5] Ídem.
[6] Ver E. Albamonte e M. Maiello, “En los
límites de la restauración burguesa”, Estrategia
Internacional 27, Buenos Aires, 2011.
[7] Idem.
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