Entrevistamos Claudia Mazzei Nogueira, professora de Serviço Social da UFSC e autora do livro “A Feminização do mundo do trabalho”, sobre o processo de reestruturação produtiva no Brasil e suas implicações para a precarização do trabalho, em especial das mulheres.
O que foi a reestruturação produtiva no Brasil?
Ao longo dos anos 80 e 90, ocorreu a expansão da hegemonia econômica, política e ideológica do neoliberalismo, inicialmente na Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha e, posteriormente, atingindo vários países em diferentes continentes, quando passou a intensificar-se a crítica ao Estado do bem-estar social (welfare state) e em particular aos direitos sociais.
Foi nesse momento ainda que vimos um claro processo de desmonte dos direitos dos(as) trabalhadores(as), os quais, desde então, vêm sofrendo uma progressiva “flexibilização” do trabalho, um crescimento da informalização (sem registro em carteira) e uma conseqüente perda das conquistas trabalhistas.
Analisamos este momento indicando que o neoliberalismo enquanto uma forma de organização da economia política, tem que ser refletido também como um tipo de cultura que amplia a submissão dos e das trabalhadoras, enfraquecendo vontades, auto-estima, dignidade e alterando a consciência de pertencimento de classe. Outra importante característica é que o ethos neoliberal vincula-se concomitantemente com a reestruturação produtiva, que traz para os processos de trabalho a flexibilização acompanhada por ênfases na modernização, eficiência e técnicas associadas de gestão. A essa nova forma de produção do modo de produção capitalista chamamos de toyotismo.
O toyotismo, modelo japonês de produção, com a sua flexibilidade para atender as mudanças de mercado, trouxe respostas imediatas que afetaram diretamente o mundo do trabalho, ampliando a fragmentação da classe trabalhadora.
O trabalho passa a ser em equipe, onde é fundamental para o trabalhador “abraçar a causa da empresa”, indicando que a partir de agora a relação de assalariamento significa novas implicações.
Com o toyotismo, o capitalismo alterou sua forma de exploração do trabalho, uma vez que, ao contrário do fordismo, o chamado modelo japonês tem, entre outros, os seguintes traços característicos: é uma produção mais diretamente vinculada aos fluxos da demanda; é variada e bastante heterogênea e diversificada; fundamenta-se no trabalho operário em equipe, com multivariedade e flexibilidade de funções, na redução das atividades improdutivas dentro das fábricas e na ampliação e diversificação das formas de intensificação da exploração do trabalho; tem como princípio o just in time, o melhor aproveitamento possível do tempo de produção, e funciona segundo o sistema de kanban, placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque, que no toyotismo deve ser mínimo. Enquanto na fábrica fordista cerca de 75% era produzido no seu interior, na fábrica toyotista somente cerca de 25% é produzido internamente. Ela horizontaliza o processo produtivo e transfere a ‘terceiros’ grande parte do que anteriormente era produzido dentro dela.
O que isso tem a ver com a precarização do trabalho?
É evidente que esta forma flexibilizada provoca conseqüências no mundo do trabalho. Dentre as mais profundas, observa-se o aumento significativo do trabalho feminino, expressão da articulação entre relações de gênero e relações de classe, possibilitando que 40% ou mais da força de trabalho seja composta de mulheres em diversos países capitalistas ocidentais.
A lógica da flexibilização na atual reestruturação produtiva do capitalismo estabelece relações com o crescimento do emprego das mulheres, fazendo com que a precarização do trabalho ocorra de forma diferenciada em relação ao trabalho feminino e masculino. Por exemplo, o trabalho terceirizado, freqüentemente possibilita a realização de tarefas no domicílio, concretizando o trabalho produtivo no espaço doméstico. Beneficia, desta forma, empresários, por não terem necessidade de pagar os benefícios sociais e os direitos vinculados ao trabalho de homens ou de mulheres. Tais benefícios atingem ameaçadoramente até mesmo os trabalhadores formais (com carteira assinada), como bem demonstra a discussão política a respeito da flexibilização da CLT (Consolidação das Leis de Trabalho), nos últimos anos.
É importante salientar que quando o trabalho produtivo é realizado no espaço doméstico, o capital, ao explorar a mulher enquanto força de trabalho se apropria com maior intensidade dos seus “atributos” desenvolvidos nas atividades reprodutivas, vinculados às tarefas oriundas de seu trabalho reprodutivo. Desta forma, além do capital intensificar a desigualdade de gênero na relação de trabalho, ele acentua a dimensão dúplice da sua exploração.
E como atinge as mulheres?
O impacto das políticas de flexibilização do trabalho, nos termos da reestruturação produtiva, tem se mostrado como um grande risco para toda a classe trabalhadora, mas, em especial, para a mulher trabalhadora. A precarização, apesar de atingir enorme contingente da classe trabalhadora, tem sexo. Por exemplo, a flexibilização da jornada de trabalho feminina só é possível porque historicamente ocorre a legitimação social para o emprego das mulheres por durações mais curtas de trabalho, inclusive pela própria mulher, que muitas vezes em nome da conciliação entre a vida familiar e a vida profissional não percebem que reproduzem a lógica e os interesses capitalistas para que as responsabilidades das tarefas domésticas continuem vinculadas à elas. E, é em prol dessa conciliação que tais empregos são oferecidos.
Além disso, não podemos deixar de explicitar que, em grande medida, os empregos de jornadas parciais percebem salários menores o que consequentemente enfatiza, equivocadamente, a conotação de que o trabalho e o salário feminino são complementares no que tange às necessidades de subsistência familiar. Uma vez que para algumas famílias, principalmente nos dias de hoje, essa premissa não é mais verdadeira, pois o valor “complementar” do salário feminino (que muitas vezes é o fundamental) é freqüentemente imprescindível para a subsistência familiar, especialmente no universo das classes trabalhadoras.
Você vai organizar junto com o Pão e Rosas um seminário sobre precarização do trabalho. Como você acha que estudar e conhecer esse tema, desde uma perspectiva marxista, pode ajudar a atuação de nosso grupo de mulheres?
O tema da reestruturação produtiva e consequentemente a intensificação da precarização produtiva é fundamental para entendermos as implicações que ocorrem no cerne da classe trabalhadora. Fazer um seminário com esse tema portanto é sempre indispensável, principalmente quando se tem como perspectiva de análise o método de Marx. No meu entendimento, sempre que apreendemos a realidade através da perspectiva marxista, mais especificamente marxiana, nos permitimos a apreensão da totalidade. Pois, ao partimos das indicações presentes nos textos de Marx, que a análise do real tem como ponto de partida o objeto, o elemento concreto, que funda o método e permite o conhecimento científico. Ou seja, o real (ontológico) tem antecedência sobre o método e sobre o processo de abstração (epistemologia). Para Marx, o real é o ponto de partida, ainda em sua forma empírica e fenomênica. Através das abstrações, do concreto idealizado, dá-se o conhecimento do processo histórico e ao realizar o difícil caminho da análise, após um processo de abstrações, só então poderemos retornar ao início, ao nosso ponto de partida. Mas um ponto de partida muito mais aprofundado e compreendido, porque como disse Marx em conhecida passagem de O Capital: “Toda a ciência seria supérflua se a aparência das coisas coincidisse diretamente com a essência”.
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