tradução
de Ana Carolina Fulfaro, do Pão e
Rosas Marília
Entrevistamos
a historiadora norte-americana Wendy Z. Goldman sobre a política
bolchevique acerca da libertação das mulheres durante os primeiros
anos logo após a tomada do poder em Outubro de 1917. A autora resume
alguns dos esforços para modificar as condições materiais que
seriam a base da emancipação das mulheres. Em sentido oposto às
políticas implementadas pela burocracia stalinista mais tarde, o
bolchevismo questionará - alimentado pelas forças da revolução
proletária - as hierarquias da velha sociedade burguesa e de suas
instituições.
Ideias
de Esquerda: Nos primeiros capítulos do livro A Mulher, o
Estado e a revolução, um dos temas centrais são as inovações
da Revolução Russa em relação aos direitos civis, especialmente
para as mulheres. Para você, quais foram as mais importantes?
Wendy
Goldman: Naquela época, em 1918, os direitos mais
importantes para as mulheres incluíram a igualdade perante a lei, o
direito ao divórcio e o direito ao aborto legal e gratuito. Estes
direitos eram essenciais para a independência das mulheres de
instituições patriarcais como a Igreja Ortodoxa e outras
autoridades religiosas, e do controle de seus pais e esposos. A
igualdade perante a lei deu as mulheres o direito a controlar seus
salários e suas propriedades, a lutar pela guarda de seus filhos em
caso de divórcio, e decidir onde viver, estudar e trabalhar. Esses
direitos não existiam antes da revolução. Hoje, em muitas partes
do mundo, as mulheres ainda não gozam destes direitos civis básicos
ou de igualdade com os homens. Creio que os direitos civis
elementares – o direito de serem tratadas em igualdade de condições
com os homens em termos do emprego, participação política,
educação, papéis sociais, oportunidades – ainda são problemas
urgentes. Sob o capitalismo, o direito a um salário digno é um
direito essencial para ambos os sexos. Se os homens e as mulheres de
todo o mundo gozassem de direitos básicos ao emprego e a um salário
que lhes permita sustentar a suas famílias, muitos dos problemas
sociais atuais desapareceriam.
IdE:
Além dos direitos formais, os bolcheviques acreditavam que a
libertação das mulheres seria impossível se não fosse socializado
o trabalho doméstico. Este é um enfoque muito interessante,
inclusive ainda hoje continua sendo um debate dentro do feminismo
(marxista ou não marxista). Por que você acha que se focaram nesse
problema?
WG:
Os bolcheviques se focaram na socialização do trabalho doméstico
porque acreditavam que a libertação das mulheres dependia da
autonomia econômica e financeira em relação aos homens. Se uma
mulher tinha que depender de um homem para mantê-la, sua capacidade
para escolher e tomar suas próprias decisões seria limitada pelo
controle econômico. Além disso, os bolcheviques acreditavam que a
responsabilização pelo trabalho doméstico era um obstáculo tanto
ao ingresso das mulheres ao trabalho assalariado em igualdade com os
homens, quanto para alcançar a igualdade de oportunidades na
educação. Para alcançar a igualdade na esfera pública, as
mulheres deviam ser libertadas da carga desigual do trabalho
doméstico que pesava sobre elas. Limpar, fazer as compras, lavar a
roupa e cuidar dos filhos pequenos, em síntese, todo o trabalho não
remunerado que Marx definiu como “reprodução da força de
trabalho”, cotidianamente, consome uma grande quantidade de tempo.
Os bolcheviques esperavam libertar as mulheres dos aspectos mais
monótonos e pesados deste trabalho para lhes permitir participar
inteira e ativamente da sociedade. Realizaram muitos estudos sobre o
trabalho e o tempo, sobre a quantidade de horas diárias que as
mulheres e homens da classe trabalhadora dedicavam ao trabalho
doméstico. O que constataram é que depois do trabalho, os homens
liam jornais enquanto as mulheres lavavam roupas. Socializavam com
amigos enquanto as mulheres cuidavam das crianças. Jogavam xadrez
enquanto as mulheres cozinhavam, limpavam e faziam as compras.
Resumindo, os homens podiam se desenvolver como seres humanos
enquanto as mulheres serviam à família (e aos homens). A solução
bolchevique foi socializar o trabalho doméstico o quanto fosse
possível: criar restaurantes públicos, construir lavanderias, criar
creches e reduzir o trabalho doméstico ao mínimo. As pessoas que
trabalhavam em empresas, tanto homens quanto mulheres, tinham bons
salários e seriam respeitados como trabalhadores. O trabalho
doméstico, ou uma boa parte dele, seria socializado e remunerado. As
mulheres seriam livres para procurar trabalho, se educar e desfrutar
do tempo livre em igualdade com os homens. Os bolcheviques tiveram
uma excelente ideia, ainda que o Estado fosse pobre demais para
transformá-las em realidade.
IdE:
É importante destacar que os bolcheviques tiveram uma política
aberta sobre as relações pessoais, especialmente considerando o
atraso social e cultural da Rússia. Porque acredita que decidiram
incluir o amor livre e o questionamento das relações hierárquica
entre pais e filhos?
WG:
A ideia do “amor livre” data de vários séculos atrás. Tem
muita história! Muitos movimentos por justiça social, incluindo as
primeiras seitas cristãs sonharam com a ideia de amor livre de
condicionantes econômicos. Os bolcheviques vieram de uma longa linha
de pensadores socialistas, socialistas utópicos e marxistas, que
buscavam criar vidas melhores e mais livres para as mulheres. Também
foram conscientes, há muitos anos, da necessidade dos “direitos
das crianças”, ou o direito da juventude a se libertar da tirania
e do poder abusivo de seus pais. Em uma cultura patriarcal, os pais
exerciam um controle tremendo sobre as mães e crianças. Tomavam as
decisões sobre o matrimonio, a educação e o trabalho. Os
bolcheviques queriam abolir o controle a favor dos direitos do
indivíduo, do ser humano. Ao chegar ao poder depois de uma
revolução, e com esperanças de construir um mundo novo, muitos
juristas, educadores e outros sonharam com novas possibilidades. Eles
questionaram as hierarquias de todo tipo, não somente aquelas dentro
da família. O Exército Vermelho foi reconstruído sob novas regras
mais democráticas em termos das relações entre oficiais e
soldados. As escolas tornaram-se mistas, e os professores, estudantes
e trabalhadores criaram soviets para governa-las. Os juristas
discutiam o “desaparecimento” da lei e do Estado e faziam leis
destinadas a incentivar esse objetivo. Inclusive desafiaram as
hierarquias na arte e na música. Na década de 1920, os músicos
soviéticos experimentaram uma “orquestra sem diretor”. Foi um
momento de grande nivelamento e de experimentação apaixonante em
todas as áreas da vida.
IdE:
Uma das conclusões de seu livro é que a inversão realizada pela
burocracia stalinista não foi somente material (considerando a
difícil situação econômica) mas também ideológica. Quais são
as bases centrais dessa discussão?
WG:
Muitas das tentativas bolcheviques de criar mais liberdade para as
mulheres enfrentaram a pobreza e a miséria criada por anos de guerra
civil. A década de 1920 foi um período de alto desemprego,
especialmente para as mulheres. A ideia da independência feminina
não podia se realizar simplesmente facilitando o divorcio porque as
mulheres não tinham como sustentar a si e a seus filhos. Muitas
delas tinham que manter também seus pais e familiares idosos ou
deficientes. No entanto, a atitude do Estado com a libertação das
mulheres se transformou exatamente no momento em que se iniciou a
industrialização e que a União Soviética se transformava em uma
sociedade de pleno emprego.
Uma
grande quantidade de mulheres ingressaram no mercado de trabalho nos
anos 30, muitas com bons salários e em postos industriais. Era
precisamente nesse ponto que a libertação das mulheres poderia ter
sido realizada. Apesar do Estado soviético incentivar firmemente a
educação, capacitação e emprego das mulheres, e criar um sistema
massivo de creches e restaurantes públicos, também realizava uma
inversão ideológica dos papéis de gênero tradicionais dentro do
lar. Além das mulheres trabalharem passaram a ser estimuladas a
assumir a completa responsabilidade de criar espaços domésticos
acolhedores.
O
Estado criminalizou o aborto em 1936 e dificultou a realização do
divórcio. Nesse sentido, o Estado stalinista adotou um híbrido de
participação feminina na força de trabalho junto com os papeis de
gênero tradicionais na família. A criminalização do aborto
representou um peso terrível e perigoso sobre as mulheres, que
continuaram realizando abortos, mas na ilegalidade. Os hospitais se
encheram de mulheres com hemorragias e terríveis infecções. A taxa
de aborto caiu momentaneamente em 1937, mas logos subiu rapidamente
outra vez; as mulheres sempre tentaram controlar sua fertilidade (é
algo essencial para poder escolher livremente e tomar decisões sobre
suas próprias vidas). O resultado foi que as mulheres, privadas do
direito ao aborto legal e seguro, seguiram abortando, mas recorrendo
a métodos perigosos.
IdE:
Finalmente, gostaríamos de saber sua opinião sobre a participação
das mulheres nas mobilizações que vem se desenvolvendo ao redor do
mundo.
WG:
Marx, Engels, August Bebel, Clara Zetkin, Lenin, Alexandra Kollontai,
e muitos outros pensadores socialistas acreditavam que o trabalho
assalariado criava condições para a emancipação das mulheres. Um
salário independente libertaria as mulheres da família como unidade
econômica e forneceria as bases para sua independência econômica,
que por sua vez, lhe permitiria decidir livremente. Creio que esses
pensadores tinham razão essencialmente. Hoje, porém, é necessário
muitas batalhas, inclusive nos países industrializados e
pós-industriais. Em muitos lugares, as mulheres trabalham, mas não
tem acesso a um salário digno. As ideias sobre os papeis da mulher
na família, as mulheres como objeto sexual, e o não respeito às
mulheres como pessoas, são aspectos que ainda devem mudar.
Apesar
disso, as mulheres são ativas em todos os âmbitos de uma forma nova
e apaixonante. Exigem castigo aos agressores na Índia, reivindicam
educação para as meninas no Afeganistão. Na Arábia Saudita
reivindicam seu direito a dirigir. Também na América Latina existem
novas lutas e reivindicações. Meus filhos alcançaram a maioridade
numa nova era. Acreditam que os jovens, sem importar o gênero,
possuem os mesmos direitos e oportunidades. Apoiam o direito das
pessoas em escolher sua orientação sexual e casar com quem queiram.
É claro que eles terão de enfrentar muitos dos mesmo problemas que
sua mãe: como combinar o trabalho e a família, como criar um lar
amoroso, em que os homens se comportem de forma igualitária
dividindo as tarefas domésticas e se ocupando do cuidado das
crianças. Lutamos estas batalhas, mas creio que as novas gerações
vão fazer melhor do que nós. Nossas meninas vão exigir mais. E
assim as coisas se transformarão.
Entrevista:
Celeste Murillo.
***
WENDY
GOLDMAN
É
historiadora social e política, especializada em Rússia e União
Soviética. É autora de A mulher, o Estado e a revolução
(publicado em castelhano pelas Edições IPS, 2010), que foi
considerado no momento de sua edição, em 1994, o melhor livro da
história escirto por uma mulher nos Estados Unidos. Também é
autora de Terror e Democracia na era de Stalin. Dinâmicas sociais
da repressão; Mulheres as portas: gênero e indústria na
Russia de Stálin. Seu último trabalho publicado foi Íntima
traição, um livro que aprofunda no comportamento e a psicologia
dos cidadãos soviéticos durante o período do terror estalinista.