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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Mulher e Revolução: entrevista com a historiadora Wendy Z. Goldman

Entrevista publicada no blog da Revista Ideas de Izquierda – Revista de Politica y Cultura http://ideasdeizquierda.org

tradução de Ana Carolina Fulfaro, do Pão e Rosas Marília




Entrevistamos a historiadora norte-americana Wendy Z. Goldman sobre a política bolchevique acerca da libertação das mulheres durante os primeiros anos logo após a tomada do poder em Outubro de 1917. A autora resume alguns dos esforços para modificar as condições materiais que seriam a base da emancipação das mulheres. Em sentido oposto às políticas implementadas pela burocracia stalinista mais tarde, o bolchevismo questionará - alimentado pelas forças da revolução proletária - as hierarquias da velha sociedade burguesa e de suas instituições.

Ideias de Esquerda: Nos primeiros capítulos do livro A Mulher, o Estado e a revolução, um dos temas centrais são as inovações da Revolução Russa em relação aos direitos civis, especialmente para as mulheres. Para você, quais foram as mais importantes?

Wendy Goldman: Naquela época, em 1918, os direitos mais importantes para as mulheres incluíram a igualdade perante a lei, o direito ao divórcio e o direito ao aborto legal e gratuito. Estes direitos eram essenciais para a independência das mulheres de instituições patriarcais como a Igreja Ortodoxa e outras autoridades religiosas, e do controle de seus pais e esposos. A igualdade perante a lei deu as mulheres o direito a controlar seus salários e suas propriedades, a lutar pela guarda de seus filhos em caso de divórcio, e decidir onde viver, estudar e trabalhar. Esses direitos não existiam antes da revolução. Hoje, em muitas partes do mundo, as mulheres ainda não gozam destes direitos civis básicos ou de igualdade com os homens. Creio que os direitos civis elementares – o direito de serem tratadas em igualdade de condições com os homens em termos do emprego, participação política, educação, papéis sociais, oportunidades – ainda são problemas urgentes. Sob o capitalismo, o direito a um salário digno é um direito essencial para ambos os sexos. Se os homens e as mulheres de todo o mundo gozassem de direitos básicos ao emprego e a um salário que lhes permita sustentar a suas famílias, muitos dos problemas sociais atuais desapareceriam.

IdE: Além dos direitos formais, os bolcheviques acreditavam que a libertação das mulheres seria impossível se não fosse socializado o trabalho doméstico. Este é um enfoque muito interessante, inclusive ainda hoje continua sendo um debate dentro do feminismo (marxista ou não marxista). Por que você acha que se focaram nesse problema?

WG: Os bolcheviques se focaram na socialização do trabalho doméstico porque acreditavam que a libertação das mulheres dependia da autonomia econômica e financeira em relação aos homens. Se uma mulher tinha que depender de um homem para mantê-la, sua capacidade para escolher e tomar suas próprias decisões seria limitada pelo controle econômico. Além disso, os bolcheviques acreditavam que a responsabilização pelo trabalho doméstico era um obstáculo tanto ao ingresso das mulheres ao trabalho assalariado em igualdade com os homens, quanto para alcançar a igualdade de oportunidades na educação. Para alcançar a igualdade na esfera pública, as mulheres deviam ser libertadas da carga desigual do trabalho doméstico que pesava sobre elas. Limpar, fazer as compras, lavar a roupa e cuidar dos filhos pequenos, em síntese, todo o trabalho não remunerado que Marx definiu como “reprodução da força de trabalho”, cotidianamente, consome uma grande quantidade de tempo. Os bolcheviques esperavam libertar as mulheres dos aspectos mais monótonos e pesados deste trabalho para lhes permitir participar inteira e ativamente da sociedade. Realizaram muitos estudos sobre o trabalho e o tempo, sobre a quantidade de horas diárias que as mulheres e homens da classe trabalhadora dedicavam ao trabalho doméstico. O que constataram é que depois do trabalho, os homens liam jornais enquanto as mulheres lavavam roupas. Socializavam com amigos enquanto as mulheres cuidavam das crianças. Jogavam xadrez enquanto as mulheres cozinhavam, limpavam e faziam as compras. Resumindo, os homens podiam se desenvolver como seres humanos enquanto as mulheres serviam à família (e aos homens). A solução bolchevique foi socializar o trabalho doméstico o quanto fosse possível: criar restaurantes públicos, construir lavanderias, criar creches e reduzir o trabalho doméstico ao mínimo. As pessoas que trabalhavam em empresas, tanto homens quanto mulheres, tinham bons salários e seriam respeitados como trabalhadores. O trabalho doméstico, ou uma boa parte dele, seria socializado e remunerado. As mulheres seriam livres para procurar trabalho, se educar e desfrutar do tempo livre em igualdade com os homens. Os bolcheviques tiveram uma excelente ideia, ainda que o Estado fosse pobre demais para transformá-las em realidade.

IdE: É importante destacar que os bolcheviques tiveram uma política aberta sobre as relações pessoais, especialmente considerando o atraso social e cultural da Rússia. Porque acredita que decidiram incluir o amor livre e o questionamento das relações hierárquica entre pais e filhos?

WG: A ideia do “amor livre” data de vários séculos atrás. Tem muita história! Muitos movimentos por justiça social, incluindo as primeiras seitas cristãs sonharam com a ideia de amor livre de condicionantes econômicos. Os bolcheviques vieram de uma longa linha de pensadores socialistas, socialistas utópicos e marxistas, que buscavam criar vidas melhores e mais livres para as mulheres. Também foram conscientes, há muitos anos, da necessidade dos “direitos das crianças”, ou o direito da juventude a se libertar da tirania e do poder abusivo de seus pais. Em uma cultura patriarcal, os pais exerciam um controle tremendo sobre as mães e crianças. Tomavam as decisões sobre o matrimonio, a educação e o trabalho. Os bolcheviques queriam abolir o controle a favor dos direitos do indivíduo, do ser humano. Ao chegar ao poder depois de uma revolução, e com esperanças de construir um mundo novo, muitos juristas, educadores e outros sonharam com novas possibilidades. Eles questionaram as hierarquias de todo tipo, não somente aquelas dentro da família. O Exército Vermelho foi reconstruído sob novas regras mais democráticas em termos das relações entre oficiais e soldados. As escolas tornaram-se mistas, e os professores, estudantes e trabalhadores criaram soviets para governa-las. Os juristas discutiam o “desaparecimento” da lei e do Estado e faziam leis destinadas a incentivar esse objetivo. Inclusive desafiaram as hierarquias na arte e na música. Na década de 1920, os músicos soviéticos experimentaram uma “orquestra sem diretor”. Foi um momento de grande nivelamento e de experimentação apaixonante em todas as áreas da vida.

IdE: Uma das conclusões de seu livro é que a inversão realizada pela burocracia stalinista não foi somente material (considerando a difícil situação econômica) mas também ideológica. Quais são as bases centrais dessa discussão?

WG: Muitas das tentativas bolcheviques de criar mais liberdade para as mulheres enfrentaram a pobreza e a miséria criada por anos de guerra civil. A década de 1920 foi um período de alto desemprego, especialmente para as mulheres. A ideia da independência feminina não podia se realizar simplesmente facilitando o divorcio porque as mulheres não tinham como sustentar a si e a seus filhos. Muitas delas tinham que manter também seus pais e familiares idosos ou deficientes. No entanto, a atitude do Estado com a libertação das mulheres se transformou exatamente no momento em que se iniciou a industrialização e que a União Soviética se transformava em uma sociedade de pleno emprego.
Uma grande quantidade de mulheres ingressaram no mercado de trabalho nos anos 30, muitas com bons salários e em postos industriais. Era precisamente nesse ponto que a libertação das mulheres poderia ter sido realizada. Apesar do Estado soviético incentivar firmemente a educação, capacitação e emprego das mulheres, e criar um sistema massivo de creches e restaurantes públicos, também realizava uma inversão ideológica dos papéis de gênero tradicionais dentro do lar. Além das mulheres trabalharem passaram a ser estimuladas a assumir a completa responsabilidade de criar espaços domésticos acolhedores.
O Estado criminalizou o aborto em 1936 e dificultou a realização do divórcio. Nesse sentido, o Estado stalinista adotou um híbrido de participação feminina na força de trabalho junto com os papeis de gênero tradicionais na família. A criminalização do aborto representou um peso terrível e perigoso sobre as mulheres, que continuaram realizando abortos, mas na ilegalidade. Os hospitais se encheram de mulheres com hemorragias e terríveis infecções. A taxa de aborto caiu momentaneamente em 1937, mas logos subiu rapidamente outra vez; as mulheres sempre tentaram controlar sua fertilidade (é algo essencial para poder escolher livremente e tomar decisões sobre suas próprias vidas). O resultado foi que as mulheres, privadas do direito ao aborto legal e seguro, seguiram abortando, mas recorrendo a métodos perigosos.

IdE: Finalmente, gostaríamos de saber sua opinião sobre a participação das mulheres nas mobilizações que vem se desenvolvendo ao redor do mundo.

WG: Marx, Engels, August Bebel, Clara Zetkin, Lenin, Alexandra Kollontai, e muitos outros pensadores socialistas acreditavam que o trabalho assalariado criava condições para a emancipação das mulheres. Um salário independente libertaria as mulheres da família como unidade econômica e forneceria as bases para sua independência econômica, que por sua vez, lhe permitiria decidir livremente. Creio que esses pensadores tinham razão essencialmente. Hoje, porém, é necessário muitas batalhas, inclusive nos países industrializados e pós-industriais. Em muitos lugares, as mulheres trabalham, mas não tem acesso a um salário digno. As ideias sobre os papeis da mulher na família, as mulheres como objeto sexual, e o não respeito às mulheres como pessoas, são aspectos que ainda devem mudar.
Apesar disso, as mulheres são ativas em todos os âmbitos de uma forma nova e apaixonante. Exigem castigo aos agressores na Índia, reivindicam educação para as meninas no Afeganistão. Na Arábia Saudita reivindicam seu direito a dirigir. Também na América Latina existem novas lutas e reivindicações. Meus filhos alcançaram a maioridade numa nova era. Acreditam que os jovens, sem importar o gênero, possuem os mesmos direitos e oportunidades. Apoiam o direito das pessoas em escolher sua orientação sexual e casar com quem queiram. É claro que eles terão de enfrentar muitos dos mesmo problemas que sua mãe: como combinar o trabalho e a família, como criar um lar amoroso, em que os homens se comportem de forma igualitária dividindo as tarefas domésticas e se ocupando do cuidado das crianças. Lutamos estas batalhas, mas creio que as novas gerações vão fazer melhor do que nós. Nossas meninas vão exigir mais. E assim as coisas se transformarão.

Entrevista: Celeste Murillo.

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WENDY GOLDMAN

É historiadora social e política, especializada em Rússia e União Soviética. É autora de A mulher, o Estado e a revolução (publicado em castelhano pelas Edições IPS, 2010), que foi considerado no momento de sua edição, em 1994, o melhor livro da história escirto por uma mulher nos Estados Unidos. Também é autora de Terror e Democracia na era de Stalin. Dinâmicas sociais da repressão; Mulheres as portas: gênero e indústria na Russia de Stálin. Seu último trabalho publicado foi Íntima traição, um livro que aprofunda no comportamento e a psicologia dos cidadãos soviéticos durante o período do terror estalinista.



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