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terça-feira, 23 de setembro de 2014

Em vermelho vivo

Terça-feira, 23 de setembro de 2014 – Edição do dia – 

Legalizaram o aborto 50 anos antes da Grã Bretanha; descriminalizaram a homossexualidade 77 anos antes da Alemanha; permitiram o divórcio 70 anos antes da Argentina. Como tomaram, há quase um século, o céu por assalto?  


Andrea D’Atri

A revolução russa de 1917 transformou tão radicalmente a vida privada que se compararmos aquelas medidas e as ideias que as inspiravam com a política social e os valores que prevalecem atualmente diremos que o mundo atrasou cem anos. Esta é a primeira conclusão que se depreende da leitura de “A mulher, o Estado e a revolução” da historiadora norte-americana Wendy Z. Goldman que na quinta-feira 25 se apresentará no auditório da Faculdade de Ciências Sociais (Universidad de Buenos Aires - UBA).
Sua investigação demonstra, minuciosamente, que para a direção do Partido Bolchevique a emancipação feminina era uma tarefa fundamental que se sustentava em quatro pilares programáticos: a incorporação das mulheres ao trabalho assalariado, a socialização do trabalho doméstico, a extinção da família e o amor ou união livre. O bolchevismo encarnava a herança libertária das rebeliões de escravos da Antiguidade que havia ressuscitado nas seitas igualitaristas e comunistas do início do capitalismo. Era herdeiro do socialismo utópico e também dessa crítica implacável que Marx e Engels haviam alvejado, com ironia, o matrimônio burguês e a família no Manifesto Comunista: uma herança revolucionária que a princípio do século XX pode tomar forma em um dos países mais atrasados do mundo, transformando a vida de milhões de seres humanos.
O stalinismo necessitou da derrota física de uma geração inteira de bolcheviques para fazer retroceder estas conquistas no terreno da vida privada. Porém, a consequência do bolchevismo se mostra – neste livro de Wendy Z. Goldman – como uma verdadeira antítese. As mulheres voltaram aos seus lares; o trabalho doméstico recaiu novamente sobre suas costas; a família tradicional se fortaleceu inclusive pela propaganda estatal e o amor livre foi qualificado como “desvio pequeno-burguês”. Daí em diante todas as correntes políticas tributárias do stalinismo estabeleceram que as mulheres e suas demandas eram secundárias na luta revolucionária.
Atualmente, quando as relações interpessoais se degradam na satisfação do individualismo mais grosseiro; quando o trabalho flexibilizado e precário impõe que todos os vínculos de emprego se submetam ao contrato temporário; quando a vida pessoal foi despersonalizada é tentador o espelhismo conservador de matrimônios e famílias tradicionais que se apresentam como oásis em meio ao deserto. Junto com o enterro da revolução o capitalismo sepultou também a audácia que alimentava a imaginação revolucionária para transformar a vida privada.
Por isso o livro de Wendy Z. Goldman é importante não apenas para reconstruir estes aspectos menos conhecidos da façanha da Revolução Russa de 1917, mas também para que em nossa luta presente e futura por uma sociedade liberada do jugo da exploração incluamos a disputa contra os valores e costumes impostos pela classe dominante e sua cultura.

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Conheça a edição brasileira do livro “Mulher, Estado e Revolução”, publicado pela Edições Iskra e Boitempo Editorial. Prólogo de Diana Assunção, diretora do Sintusp e fundadora do grupo de mulheres Pão e Rosas Brasil.

Para adquirir o livro mande email para: paoerosasbr@gmail.com

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