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domingo, 4 de agosto de 2013

A emancipação das mulheres em tempos de crise mundial



Por Andrea D'Atri e Laura Liff*

A sintomática emergência política dos setores mais oprimidos questiona a ideia de emancipação como conquista progressiva e acumulativa de direitos (tal como propõe um feminismo partidário, exclusivamente, aquele da estratégia do lobby parlamentar para a “ampliação da cidadania”) e põe em xeque a perspectiva de “democratizar radicalmente a democracia” (como propõe o pós-feminismo, ou feminismo pós-moderno), que se mostra inviável quando a crise econômica, social e política segue desenvolvendo-se.
Com a crise, torna-se evidente que cada direito obtido não é uma conquista perene, mas que está sujeita a cortes e ajustes que imponham os governos e instituições financeiras internacionais, como também – quando não se trata de um problema estritamente econômico – aos vai-e-vens das relações de forças, já que a crise agudiza a polarização social e isso faz resurgir com virulência os setores mais reacionários que expressam sua xenofobia, homofobia, misoginia, etc. Não são poucos os governos que, por trás de um discurso supostamente “progressista”, escondem compromissos com setores direitistas e concessões a determinados grupos religiosos, reforçando o controle social com a retirada de liberdades democráticas.
Na população que é lançada pelo capital a uma vida miserável, não há “igualdade de gênero”: 70% são mulheres e meninas. Mas a desigualdade não se encontra somente nos índices econômicos. Sua discriminação – como a que se exerce também contra imigrantes e pessoas não heterossexuais – contrasta com os direitos adquiridos nas últimas décadas: repressão, violação e assassinato de mulheres no Egito e outros países da África e Oriente Médio; a escalada xenófoba na Europa; as mobilizações multitudinárias, encabeçadas pela Igreja Católica, grupos de cristãos evangélicos e políticos conservadores, contra os projetos para legalizar o matrimônio igualitário [1]. O capitalismo ensina, com essas lições brutais, que a emancipação feminina assim como de outros grupos sociais subjulgados, é uma quimera enquanto subsistir este regime social, político e econômico. Se esta é a perspectiva, o que deve levantar o feminismo, enquanto movimento emancipador que denuncia a desigualdade social, política e cultural das mulheres sob domínio patriarcal? E o que tem a dizer o marxismo revolucionário?

Paradoxos da restauração conservadora: mais direitos e maiores humilhações

Neste ultimo século, a vida das mulheres mudou de uma maneira que não é comparável às mudanças relativamente menores que experimentou a vida dos homens no mesmo período. Mas há outros dados que contrastam brutalmente com essa imagem de “progresso sem contradições”, até uma maior igualdade de gênero, que é própria dos países imperialistas e das semicolônias prósperas. Como entender dentro deste horizonte, que a cada ano entre 1 milhão e meio e 3 milhões de mulheres e meninas são vítimas da violência machista e que a prostituição se transformou numa indústria de grandes proporções e enorme rentabilidade, o que por sua vez permitiu desenvolver expansivamente as redes de tráfico?
Além disso, mundialmente, apesar dos enormes avanços científicos e tecnológicos, morrem 500 mil mulheres anualmente, por complicações na gravidez e no parto, enquanto 500 mulheres morrem, por dia, em decorrência de abortos clandestinos. No mesmo período, aumentou exponencialmente a “feminização” da força de trabalho, especialmente na América Latina, às custas de uma maior precarização[2]. Por isso, diferente de outras crises mundiais, esta que estamos atravessando encontra a classe operária com uma força de trabalho que representa mais de 40% do emprego global. 50,5% dessas trabalhadoras estão precarizadas e, pela primeira vez na história, a taxa de emprego urbano entre as mulheres é levemente superior à taxa de emprego rural [3].
É gritante o contraste entre os direitos adquiridos – incluindo a legitimidade que alcançou, nas últimas décadas, o conceito de “igualdade de gênero” - e o desolador panorama destas estatísticas. Foi buscando uma explicação para esta contradição, que a feminista norte-americana Nancy Fraser expressou sua insatisfação com a tese de que “a capacidade relativa do movimento (feminista) para transformar a cultura, contrasta de maneira aguda com sua incapacidade relativa para transformar as instituições” [4]. E a partir desse balanço impróprio (que adjudica ao feminismo um triunfo cultural e  certo fracasso institucional), Fraser desafia com uma nova hipótese, perguntando-se se por acaso o que aconteceu é que “as mudanças culturais impulsionadas pela segunda onda, saudáveis em si mesmas, serviram para legitimar uma transformação estrutural da sociedade capitalista que avança diretamente contra as visões feministas de uma sociedade justa”[5]. A autora se permite suspeitar que o feminismo e o neoliberalismo se tornaram afinados uma ao outro, questionando a cooptação do primeiro e a sua subordinação à agenda do Banco Mundial e a outros órgãos internacionais.
A suspeita parece certa. Por acaso o feminismo só pode nos propor uma restrita emancipação, limitada a setores minoritários que gozam de alguns direitos democráticos, em determinados países, às custas da extensão de brutais situações de humilhação contra a imensa maioria das mulheres em escala mundial? Esta situação paradoxal, que as décadas da restauração conservadora nos legaram, não pode ser explicada senão reportando-se à correlação de forças que ficou colocada com a radicalização iniciada nos 60. Desde o fim dessa década até meados dos anos 80, ocorreu um ascenso revolucionário de massas que questionou não somente a ordem capitalista, mas também, o controle férreo da burocracia estalinista nos Estados Operários do Leste da Europa.
No início deste extenso processo de radicalização, que atravessou os continentes e colocou em xeque o equilíbrio pactuado entre o imperialismo e a burocracia estalinista ao fim da 2ª Guerra Mundial, também deu lugar ao florescimento de outros questionamentos radicais sobre a vida cotidiana: o movimento feminista se recriou sob novas premissas, originando o que ficou conhecido como “a segunda onda”, o movimento pela libertação sexual saiu do “armário” imposto pela repressão, irrompendo na cena mundial com as barricadas de Stonewall e a visibilidade “orgulhosa”; a população afro-americana também emergiu, gritando sua rebeldia e hasteando a bandeira do blackpower, enquanto os campi universitários se convertiam em ambientes de deliberação política e filosófica, experimentação musical e lisérgica, ao mesmo tempo em que a família tradicional, o par heterossexual monogâmico e todas as relações intersubjetivas eram questionados pelo amor livre e a vida comunitária.
Mas a contraofensiva imperialista – conhecida como “neoliberalismo” – foi descarregada sobre as massas desferindo-lhes uma derrota não apenas política, mas cultural. Diferente das outras guerras mundiais, a recuperação parcial que o sistema capitalista conseguiu não se baseou na destruição das forças produtivas mediante o aparato bélico. Ainda que houvesse “derrotas físicas”, a base desta “nova ordem” foi, essencialmente, a descomunal fragmentação da classe trabalhadora. Frente a este ataque imperialista às massas e às suas conquistas, as próprias organizações criadas pela classe operária (desde os partidos como a socialdemocracia ou os PC, até os sindicatos e os estados operários burocratizados) atuaram como agentes da implementação dessas mesmas medidas que reconfiguraram o domínio do capital [6]. O modelo do livre mercado e o pensamento único lideraram este período de restauração, caracterizado pelo desvio e a canalização do ascenso de massas através da crescimento dos regimes democráticos capitalistas, abrindo o caminho para  medidas econômicas, sociais e políticas que liquidaram grande parte das conquistas obtidas durante o período anterior.
Este processo se estendeu no tempo e no espaço de uma maneira nunca antes vista. Ainda que “mais extensas geograficamente, se constituíram como democracias degradadas tendo como base fundamental as classes médias urbanas e até setores privilegiados da classe operária (especialmente nos países centrais), que tiveram a porta aberta à extensão do consumo. A desideologização do discurso político sob a combinação da exaltação do indivíduo e a sua realização no consumo (“consumismo”) foram as bases deste 'novo pacto' muito mais elitista que aquele do pós guerra, que conviveu com o aumento da exploração e degradação social da maioria da classe trabalhadora, junto com altos índices de desemprego e a proliferação exponencial da pobreza” [7] (as ênfases no texto são nossas)
Enquanto os setores mais altos da classe trabalhadora e as classes médias eram incorporados ao festim consumista, as grandes maiorias eram lançadas ao desemprego crônico, à aglomeração nas favelas e à marginalidade social, política e cultural. O individualismo também permeou a cultura de massas. Para essa “integração” que estabeleceu um “novo pacto” entre as classes foi necessário incorporar, rebaixando, na agenda das políticas públicas, muitas das demandas democráticas levantadas pelos movimentos sociais, inclusive o feminismo.

Feminismo na democracia: da insubordinação à institucionalização

O divórcio entre a classe operária, por um lado, com suas direções encabeçando a entrega de conquistas ou, no melhor dos casos, resistindo a partir de um sindicalismo vulgar aos ataques neoliberais e, por outro, os movimentos sociais – que, frente à derrota, abandonaram a perspectiva de uma transformação radical do sistema global – se consumou finalmente, depois de uma longa história de barricadas compartilhadas. “Marginalizado por si mesmo” ou integrado às batalhas pelo “reconhecimento” devido no espaço do “Estado democrático”, o feminismo abandonou a luta contra a ordem social e moral que o capital impõe e que descarrega as maiores misérias e ofensas contra as mulheres. Ao contrário, a ausência de um horizonte revolucionário e o papel cumprido por suas próprias direções no momento do maior ataque perpetrado pelo capital, afundou a classe operária em um corporativismo economicista. Reformismo de duas caras: a política feminista só se limitou a pressionar através do lobby às instituições do Estado para conseguir uma “ampliação de cidadania” que, antes cedo do que tarde, está se transformando em papel molhado frente à crise em curso; enquanto às mulheres da classe trabalhadora se designa, no melhor dos casos, somente o “direito” ao salário, deixando nas mãos da casta política burguesa o manejo dos assuntos públicos.
As mulheres que almejavam sua emancipação não tiveram, durante estas décadas de profunda restauração conservadora, um modelo a seguir nos países que abarcava o denominado “socialismo real”, como havia sido no começo do século XX. Ali somente encontravam a confirmação de que toda tentativa de opor-se à dominação existente, poderia gerar novas e monstruosas formas de dominação e exclusão. O estalinismo havia se encarregado de manchar as bandeiras libertárias do bolchevismo para a emancipação feminina e transformá-las em seu inverso: reestabeleceu a ordem familiar promovendo o papel das mulheres como esposas, mães e donas de casa, revogou o direito ao aborto, criminalizou a prostituição, como nos tempos do czarismo; reduziu drasticamente ou diretamente eliminou as políticas públicas de criação de lavanderias, restaurantes e moradias comunitárias e liquidou todos os órgãos partidários femininos. Estas foram somente algumas das medidas com as quais a burocracia destruiu e reverteu os pequenos, porém audazes, passos dados pela Revolução Russa de 1917. Junto a cooptação e à integração ao regime capitalista, avançou-se em direitos democráticos elementares e se transformou a agenda feminista – antes elaborada somente por alguns setores de vanguarda – em “senso comum” de massas. Mas a radicalidade do feminismo da alvorada da “segunda onda” foi engolida pelo sistema. Sua aposta subversiva foi desandada no caminho em que transitou “da rua ao palácio”, da transformação social radical à transgressão simbólica resistente.

Entre a extensão inusitada do consumo para amplos setores de massas, a exaltação do individualismo como valor social e a conversão dos movimentos sociais em pedreiras de tecnocratas para abastecer de pessoal capacitado as agências de desenvolvimento, o feminismo igualitarista perdeu seu caráter crítico. Depois, o feminismo da diferença e o feminismo pós-moderno questionaram, relativamente, essa conciliação.
Mas a adaptação a uma época na qual a revolução se distanciava do horizonte, com uma classe operária submersa num atraso político, a crise de subjetividade sem precedentes e a desmoralização provocada pela identificação do estalinismo com o “socialismo”, também tiveram seu correlato nos novos fundamentos teóricos feministas e feministas pós-modernos. Suas respostas, longe de atacarem o coração do problema, retomando as críticas mais radicais com as quais o feminismo havia conseguido apontar à aliança “capital-patriarcado”, estabeleceram a ideia de uma emancipação individual, enganosamente assimilada às possibilidades de consumo e apropriação – transformação subjetiva do próprio corpo.

Apontamentos para um debate

Esta reconfiguração da situação das mulheres, com novos direitos e vítimas de maiores danos, junto a uma nova composição de gênero da força de trabalho provocada pelas transformações que ocorreram nas últimas décadas, obriga-nos a reatualizar o debate entre feminismo e marxismo sobre o caráter da relação entre capitalismo e patriarcado, o agente da emancipação e a questão da hegemonia. Está colocada a hipótese do ressurgimento de um feminismo que não se autossatisfaça no refúgio intimista da libertação individual e se coloque num horizonte de crítica radical anticapitalista? Isso implica não somente o combate contra as variantes reformistas que propunham a inclusão, ainda quando o fazem sob as labirínticas formas de uma charada pós-moderna, mas também, recuperando – contra todo reducionismo economicista ou politicismo oportunista funcionais àquele reformismo – as melhores tradições da história do marxismo revolucionário na luta contra a opressão da mulher.


*Texto originalmente publicado na Revista "Ideas de Izquierda" impulsionada pelo Partido dos Trabalhadores Socialistas (PTS) da Argentina e independentes.
[1]  Em Paris, centenas de milhares de pessoas marcham contra a aprovação do casamento igualitário. Na manifestação, liderada por personalidades da direita e da ultradireita francesa, se ouvia  contra o governo de Hollande a frase: “Não toque no matrimônio, ocupe-se do desemprego”. Em 2008, na Califórnia, grupos direitistas – como a organização Project Marriage (Projeto Casamento) – promoveram a emenda constitucional denominada “Limitar o matrimônio”. Algo parecido aconteceu no Estado Espanhol, onde o PP e a Igreja encabeçaram as mobilizações contra o casamento gay. Recentemente, no Brasil, milhares participaram na “Marcha pra Jesus”, uma manifestação de cristãos evangélicos liderados pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que aprovou um projeto de lei para que as faculdades de psicologia considerem a homossexualidade como uma doença e estabeleçam seu tratamento.
[2] Nas 3.000 zonas francas que há no mundo  trabalham mais de 40 milhões de pessoas, sem nenhum direito, mas 80% são mulheres que tem entre 14 e 28 anos.
[3] OIT, Informes 2011 e 2012.
[4] Nancy Fraser, “El feminismo, el capitalismo y la astucia de la historia”, New Left Review 56, Madrid, 2009.
[5] Ídem.
[6] Ver E. Albamonte e M. Maiello, “En los límites de la restauración burguesa”, Estrategia Internacional 27, Buenos Aires, 2011.
[7] Idem.

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