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segunda-feira, 20 de junho de 2011

BOLETIM PÃO E ROSAS DA ECONOMIA/UNICAMP




Onde estão os encantos?

            Muitos fatos que acontecem na sociedade nos passam despercebidos. Estamos tão acostumadas à mentira de uma sociedade livre e de iguais condições somada a uma visão fatalista de nossas vidas, que acabamos por naturalizar vários tipos de violência: fome, desigualdade, falta de acesso à água potável e rede de esgoto, analfabetismo, discriminação racial, xenofobia etc. A violência contra a mulher é uma delas: a mulher morta e esquartejada pelo companheiro, a mulher que fica paralítica vítima da violência doméstica, os vários casos de estupros, de abusos, de tráfico de mulheres são capazes de nos sensibilizar, geram ódio, raiva, pena, mas não são capazes de nos mobilizar. Por exemplo, em Campinas, conforme dados da Secretaria de Segurança de SP, só nos primeiros quatro meses desse ano, foram registrados 73 casos de estupro. No estado de SP, em 2011, já ocorreram 2699 casos! Esses dados são reflexos daquilo que ocorre diariamente, e é por nós, mulheres e homens, naturalizado ou banalizado.
Segundo a Unesco, uma em cada três ou quatro meninas é abusada sexualmente antes de completar 18 anos e segundo a ONU, uma em cada em três mulheres será espancada, violentada ou estuprada em algum momento de sua vida. Qual a razão desses dados bárbaros? Na nossa sociedade capitalista patriarcal em que tudo é transformado em mercadoria, desde os direitos elementares para sobrevivência humana até o próprio ser humano e suas relações, as mulheres são vistas pelos homens e por elas mesmas como uma propriedade masculina, um objeto, e não um sujeito independente (num sentido amplo que ultrapassa o conceito meramente financeiro englobando a sua independência plena com relação ao homem, à maternidade, à família), capaz de transformar a realidade. A Igreja, o Estado burguês, a mídia possuem um papel fundamental na difusão dessa visão de mulher enquanto objeto sexual, na qual se destaca o papel reprodutivo e o papel submisso de usufruto do homem. 
Essa ideologia que legitima e gera esses atos e esses números inadmissíveis é a mesma que se expressa nas Economíadas. O que a princípio pode parecer apenas um torneio esportivo despido de qualquer conteúdo ideológico revela, num olhar mais atento e crítico, o machismo, a homofobia e o elitismo ocultos. Na Economíadas Caipira do ano passado, vimos um exemplo escancarado (!) nos hinos divulgados em material oficial da Atlética, ou seja, nas músicas que resumem os objetivos e os valores dos estudantes de economia. “Pinga, maconha, mulher e baixaria/quem manda nessa porra é Unicamp economia”, “Ela diz que é gatinha, que seu peito é natural/Diz que sua bolsa Prada foi presente de Natal/Mas eu to ligada na pura realidade/Chupa rola e dá o cu pra pagar mensalidade/ Ela é puta graduada!”, “Aqui só tem coiote louco/Quero beber, quero cheirar/Cuidado biscatinha da Puccamp porque a fodeu vai te pegar!” ou “Essa é a escola que todos desejam, mas poucos conseguem entrar/Você que tentou e não conseguiu, vai pra puta que pariu!” são alguns exemplos dos hinos cantados. 2011 é mais um ano em que esses mesmos estudantes se animam para, nos jogos e nas festas, ostentarem “a melhor escola do Brasil”, cheia de encantos - mas só para os poucos vencedores que passaram no vestibular.
Essa visão está tão presente e tão arraigada nos homens e nas mulheres, que o fato de a Atlética ter uma presidente mulher não é capaz de alterar em nada o caráter machista e opressor das festas, como a festa da Senha; dos trotes, com concursos de miss e elefantinhos; dos eventos financiados e promovidos pela entidade cujo símbolo do coiote com a coiote fêmea estereotipada, dinheiro e cerveja está sempre presente.
Esse não é um fato isolado das Economíadas, está na maioria dos jogos universitários, independente das faculdades que os organizam. No InterUnesp do ano passado vimos a expressão máxima da barbaridade que permeia esses eventos com o “Rodeio das Gordas”, no qual os homens se aproximavam das mulheres que consideravam gordas, as empurravam no chão, montavam em cima e cronometravam quanto tempo conseguiam ficar sobre elas.
            É importante lembrar que tanto o InterUnesp, como as Engenharíadas, as Economíadas e outros desses eventos recebem financiamento de empresas privadas, tais como as de cerveja, cuja publicidade machista é difundida na mídia e nesses tipos de festas, e das reitorias das universidades. No IE sabemos que a Atlética já tentou realizar acordos com empresas como o SANTANDER em troca de publicidade para o banco no uniforme dos times e dentro do instituto, além de receber uma verba da diretoria para a realização das Economíadas.
            Ao passo que, quando há a tentativa de se contrapor a esse tipo de festa, construindo de forma politizada e consciente uma outra forma de sociabilidade, sem machismo, sem homofobia, sem hierarquia, se propondo a romper com toda a tradição tão reivindicada por essas entidades, como foi no caso do Festival Contra as Opressões promovido pelo DCE da Unesp no ano passado, a resposta dada pela reitoria são processos de sindicância aos alunos organizadores. No IE não é diferente, enquanto temos o auditório negado pela direção para a realização de ciclo de estudos de autores marxistas sob a alegação de que esse não é um assunto de relevância acadêmica, a Atlética tem as portas do auditório escancaradas para a realização do seu “Momento Economíadas”.
Diante de tudo aquilo que denunciamos nas linhas acima não cabe mais aceitarmos os discursos dos que nos dizem que essa é uma questão subjetiva, apenas uma brincadeira, que depende da interpretação individual. Esta é uma situação diante da qual não podemos mais nos calar, achando que é natural. É preciso rompermos o silêncio, é preciso denunciarmos essas atitudes, boicotando esses tipos de eventos, pressionando e discutindo politicamente com e nessas entidades para mudarmos essa realidade bárbara.




A precarização do trabalho tem rosto de mulher

“Sim, a precarização do trabalho em nosso país tem rosto de mulher. E é justamente aí que reside o perigo desta constatação: o que aconteceria se milhões de mulheres pobres, trabalhadoras terceirizadas, informais, donas de casa, desempregadas, esse verdadeiro exército silencioso, se levantasse de uma só vez contra todas as formas de opressão e contra este sistema que nos explora e superexplora cada vez mais?”[1]. 
             Nosso Brasil do crescimento e desenvolvimento econômico, do Pré-Sal, da Copa do Mundo e das Olimpíadas, incluído entre as maiores economias do mundo, esconde uma realidade muito distinta dessa aí, propagada pelo governo e pela mídia burguesa para todo o mundo. O crescimento que aconteceu com o Governo Lula e continua com o da Dilma ocorreu, como apontam os dados estatísticos do IBGE, com queda no desemprego e maior criação de empregos formais, ocupados principalmente pela força de trabalho feminina. Contudo, o que permanece oculto é que estes postos de trabalho são, na realidade, trabalhos precarizados, sem estabilidade, sem condições decentes no local de trabalho e com contratos flexibilizados – sem garantia de direitos historicamente conquistados, como licença-maternidade, 8 horas diárias de trabalho e auxílios -, permitindo que os trabalhadores ganhem menos de um salário mínino.
            Essa realidade do mercado de trabalho que parece tão distante está escancarada na nossa frente. Os terceirizados da limpeza, do bandejão, da segurança, da construção civil aqui da Unicamp são todos empregados com esse tipo de contrato. Trabalham dez horas por dia, inclusive finais de semana, e recebem (líquido) menos que um salário mínimo, não possuem lugar para descansar (no IE, por exemplo, as terceirizadas descansam no bosque porque não possuem um local adequado para ficarem durante o horário de almoço), não possuem direitos trabalhistas, não podem faltar nem se estão doentes porque são ameaçados de serem demitidos, são ignorados pelos alunos, professores e funcionários efetivos, não podem conversar com estes e caso o façam podem sofrer punições, serem demitidos ou transferidos para outra unidade(essa fiscalização aqui na Unicamp tornou-se mais rígida após a tentativa de contato de alguns estudantes com os trabalhadores terceirizados e a mobilização dos primeiros contra a terceirização, no ano passado), enfim, trabalham num regime de semi-escravidão.           
            A precarização do trabalho, chamada de terceirização, atinge toda a classe trabalhadora, mas está mais presente entre nós, mulheres. Isto porque a mão-de-obra feminina, sendo considerada por nossa sociedade capitalista como inferior à masculina, recebe salários menores e este fato serve como pretexto para que o salário de toda a classe trabalhadora seja rebaixado. Nós, mulheres, ocupamos os postos de trabalho mais precarizados, com menor remuneração e com serviços que são, em sua maioria, extensão do serviço doméstico.
            Além desse trabalho realizado em condições desumanizadoras, estas trabalhadoras ainda possuem sob sua responsabilidade o serviço doméstico e o cuidado da família, realizando uma dupla jornada. De acordo com os dados do Ipea, as mulheres chefes de família e com filho trabalham cerca de 13 horas semanais a mais que os homens na mesma situação, realizam 30 horas semanais de trabalho não remunerado, ou seja, trabalho doméstico, e isso é três vezes mais do tempo gasto pelos homens na realização das mesmas tarefas. É importante ressaltar que este trabalho feito em casa é essencial para o funcionamento do capitalismo, pois irá garantir a manutenção da força de trabalho: um trabalhador precisa se alimentar, ter sua roupa lavada, passada, viver em um local limpo, caso contrário não poderá ir trabalhar e tudo isso é garantido dentro de casa, pela mulher, num papel que lhe é socialmente atribuído.
            Estas trabalhadoras, ao contrário do que muitos dizem, não realizam funções secundárias dentro da universidade, são parte dela e são essenciais para o seu funcionamento. Contudo, sabemos que embora suas tarefas sejam essenciais para o funcionamento da universidade, a estes trabalhadores e aos seus filhos nunca será dada a oportunidade de ingressar na universidade com outro papel que não este. De acordo com os dados do Inep apenas cerca de 3,5% da população brasileira tem acesso ao ensino superior. O rendimento médio per capita da população é de 1,3 salários mínimos, já o dos estudantes da Unicamp é o dobro disso, 3 salários mínimos. No caso do curso de economia, um dos mais elitizados, essa renda média salta para cerca de 4,5 salários mínimos por pessoa da família.
            Além disso, o conhecimento que é aqui gerado não retorna como benefícios para esses trabalhadores, ao contrário, são vendidos para as transnacionais em acordos com a reitoria e o governo do Estado, em troca de financiamento de laboratórios, festas, atléticas, intercâmbios aos estudantes, estágios. Estas são as mesmas transnacionais e empresas –representantes do imperialismo– que (como bem estudamos no nosso curso) no início dos anos 80, sob o pretexto de se ajustar a um ambiente instável de crise – gerada por elas – flexibilizaram, racionalizaram e terceirizaram a sua produção, aumentando os seus lucros por meio da superexploração dos trabalhadores em todo mundo, mas principalmente nos países subdesenvolvidos. 
            Estes trabalhadores e, principalmente estas trabalhadoras, mulheres, que sentem sobre si o peso da dupla exploração, dentro e fora de casa, não estão calados. Ainda nesse semestre, vimos as manifestações dos trabalhadores terceirizados em Jirau contra as condições precaríssimas de trabalho, numa obra em construção do grandioso PAC, que teve como resposta do governo federal o envio da Força de Segurança Nacional. E mais perto de nós, na USP, as trabalhadoras terceirizadas da limpeza também realizaram uma greve porque estavam trabalhando ser receber salário já havia três meses, um fato que era agravado pela razão da firma ter declarado falência. Uma greve que, no início, reivindicava apenas recebimento dos salários, transformou-se em uma luta contra a terceirização e pela efetivação sem concurso público dessas trabalhadoras, bandeira levantada também por nós do Pão e Rosas, pois se o objetivo do concurso público é provar a capacitação dessas trabalhadoras para exercerem as suas funções, a maior prova que podemos ter é o fato daquelas já as exercerem.  O apoio do SINTUSP (Sindicato dos funcionários da USP) e dos estudantes (que foram chamados pelas trabalhadoras a saírem das salas de aula e lutarem com elas) teve como resultado o pagamento dos seus salários pela Reitoria da USP, apesar de não terem sido efetivadas. É importante ressaltar que a Reitoria da USP a princípio tinha se negado a pagar estes direitos às trabalhadoras, sob a alegação de que isso era de responsabilidade da empresa que as contrataram, contudo, em razão das mobilizações, dos piquetes, dos atos e manifestações, da lutas destas trabalhadoras em aliança com os estudantes esse pagamento foi arrancado da Reitoria.
            O movimento estudantil e os centros acadêmicos (especialmente este aqui, de economia, cujos alunos estudam esta questão diariamente) devem estar juntos na luta com e por estas trabalhadoras, numa perspectiva clara de uma democratização ampla e radical do acesso ao ensino superior público, gratuito e de qualidade, para que este tipo de trabalho realizado em condições desumanas não ocorra aqui na universidade e nem em local algum. Para que essa grande maioria, que não entra na universidade senão para limpar salas que nunca irão usar, construir prédios nos quais os seus filhos nunca poderão estudar, tenham acesso à universidade. Não podemos mais fechar os olhos e estudar em silêncio numa Universidade que explora trabalho semi-escravo de mulheres e homens para funcionar.
 
            Nós, do grupo de mulheres Pão e Rosas, acreditamos que diante dessa realidade não adianta lutarmos sozinhas, é necessário que nós, mulheres, nos organizemos, para que juntas, nos aliando com os setores mais oprimidos da sociedade, consigamos exigir e arrancar os nossos direitos, tal qual nos ensinaram as trabalhadoras terceirizadas da USP. A nossa luta não deve ser contra os homens, mas sim contra esse sistema capitalista e patriarcal que nos explora e nos oprime diariamente – nos impondo dupla jornada de trabalho, exigindo de nós padrões de beleza inalcançáveis – e que necessita manter e perpetuar o machismo, a homofobia e o racismo pra funcionar. A emancipação da mulher, a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, não virá por meio da chegada ao poder de uma ou outra mulher, que no final estão lá não para representar as milhares de trabalhadoras, tais como as terceirizadas, mas sim para atender ao interesse de uma pequena elite, da classe burguesa. Somente a partir da nossa auto-organização e da nossa luta anticapitalista e antiimperialista numa perspectiva classista poderemos mudar esta realidade.


[1] A precarização tem rosto de mulher, ORG. Diana Assunção. Edi. ISKRA, 2011.

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