MARIA. São cinco e meia quando Maria acorda. Já um pouco atrasada, ela corre pra não perder o primeiro ônibus do seu trajeto até o seu novo trabalho de professora eventual numa escola um pouco longe da sua casa. Levou os documentos, fez todo a burocracia e ainda teve que passar pela prova do governo pra ver se “sabia dar aula”. Depois penou de porta em porta mendigando umas aulas pra dar e acabou achando esta escola na periferia, a única que tinha vaga porque nenhum efetivo queria dar aula lá. “Muita violência”, diziam os jornais. Paga pouco, e por isso ela não tem como sair da casa dos pais pra morar mais perto da faculdade ou do trabalho. Mas apesar de tudo ela gosta. Pelo menos nessa escola tem aula de manhã e à tarde, e ela consegue dar aula quase todo dia. A molecada zoa, às vezes até desrespeita mesmo, chamando de gostosa e umas merdas assim. Mas ela dá uma dura e se acerta com os alunos, se convencendo de que eles não fazem por mal. Quando não tem aula pra ela dar, fica estudando nos intervalos. Vai ter prova de Latim e de Fonética e Fonologia do Português, as duas na semana que vem, duas matérias que ela acha um pé no saco e que não tem muito a ver com o que ela esperava estudar quando entrou na Letras. Mas já conseguiu estudar bastante pra de fonfon, e a de Latim talvez dê pra dar uma colada se for necessário.
E hoje não vai ter estudo pra prova e nem vai dar aula à tarde: é um dia de preocupações maiores. Maria teve que fazer um empréstimo de mil e quinhentos. Mil e quinhentos, porra! Não fazia a menor idéia como ia pagar isso, que dava umas três vezes seu salário. Só que tem coisas que a gente não planeja, acontecem e pronto, e agora era resolver de um jeito ou de outro. Apesar da treta que ia ser pagar o empréstimo, achou que no fim era a melhor opção. Só tinha contado pro namorado, que depois disso sumiu. Seu pai, se soubesse, era capaz de expulsar ela de casa. Arranjou o endereço da clínica com uma amiga, e tirou este dia à tarde pra ir lá resolver a parada. Foi sozinha, e não foi nada fácil, mas Maria nunca foi de não conseguir segurar suas broncas. Já deu duro em mais de dez empregos diferentes desde os quinze, penou dois anos pra pagar cursinho e conseguir entrar em Letras na USP.
Não conseguiu cumprir o repouso que lhe indicaram: tinha que ir à faculdade, e chegou correndo dez minutos antes do bandejão fechar. Na aula, lutou pra conseguir prestar atenção. O sono tava maior do que sempre, porque na noite anterior não dormiu de ansiedade. Mas Literatura Brasileira era sua matéria preferida, e ela se esforçou pra não perder o fio da meada, mesmo dando umas pescadas de vez em quando. O fim da aula ficava por conta da sua imaginação, porque tinha sempre que correr pra conseguir pegar o busão lotado no ponto da FFLCH. Mais duas horas até em casa. Enfim, algumas horas pra se preparar pra um novo dia.
Maria não é exceção, é a regra. Andando nos corredores da Letras, ela passa incógnita. Os panfletos que derrubam sobre ela no intervalo e na saída, pedindo que votem nessa ou naquela chapa, não falam dos problemas de sua vida nem do que ela vê acontecendo no mundo e que influem sobre ela. Do Caell, o que ela sabia era uma cerveja às vezes quando matava uma aula. Era bom, uma cerveja pra trocar idéia com a galera. Mas ela nunca imaginou que ele poderia ser mais do que isso. Que ele poderia servir pra juntar todas as pessoas que passam pelos corredores da Letras com problemas como os seus, e que poderia servir pra lutar contra todas estas merdas que lhe empurravam goela abaixo todos os dias: desde as aulas sem relação com seu emprego, com suas preocupações ou com sua vida; as humilhações e opressões que sofre por ser mulher em tantos lugares; as dificuldades que enfrenta para poder ser professora; enfim, todas as coisas que nunca passaram pelas discussões que ela via acontecerem nos debates do Centro Acadêmico. É este o Caell que queremos: um Caell que pense a universidade e o mundo lutando por sua transformação, que lute por uma outra universidade, voltada às necessidades e preocupações dos trabalhadores e do povo, e não que procure “consertar as peças” dessa engrenagem absurda que esmaga as pessoas, que as molda para aceitarem a vida de professores mal remunerados, humilhados, acossados pelas coisas como elas são.
Convidamos todos a ler nosso programa, conversar e discutir com os membros e os apoiadores da nossa chapa sobre esta perspectiva. http://estadodeexcecao2010.blogspot.com/
muito interessante as matérias do blog (: Parabéns.
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