Publicamos abaixo artigo escrito por Diana Assunção, Livia Barbosa e Babi Dellatorre para o Jornal Palavra Operária da Liga Estratégia Revolucionária.
Enquanto escrevemos esse artigo, 4 milhões de mulheres, meninas e meninos são explorados sexualmente no mundo inteiro. O Brasil é o primeiro país no ranking latino-americano em relação ao tráfico de mulheres
[1]. É também líder na lista de países com maior incidência de crimes de pornografia pela internet, e o terceiro colocado dentre os países com índice de abusos sexuais de crianças e adolescentes
[2]. Ao mesmo tempo, a sociedade patriarcal na qual vivemos naturaliza uma imagem abusiva das mulheres enquanto objetos sexuais para desfrute de terceiros, incentivando a busca de um estereótipo de beleza caro, muitas vezes inalcançável para a maioria de nós, reforçando a idéia de que as mulheres já se “emanciparam” sexualmente. Mas a sexualidade, especialmente a feminina
[3], é reprimida sempre e quando não está diretamente relacionada com a reprodução. Também, a decisão e autonomia das mulheres sobre seu próprio corpo são consideradas crime pela justiça burguesa de nosso país, resultando na morte de milhares de mulheres todos os anos por conta dos abortos clandestinos. É desta ordem patriarcal que o capitalismo se apropria para perpetuar a sua ordem de exploração.
Patriarcado e propriedade privada
Nas sociedades patriarcais sempre se transmitiu a idéia de que há um modelo normal e regular de estruturas familiares e relações sexuais que deveriam ser seguidas. Isso porque, como demonstra Friederich Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, a opressão das mulheres foi e segue sendo extremamente funcional para a perpetuação da propriedade privada dos meios de produção, no caso das famílias proprietárias, e para a reprodução da força de trabalho, no caso das famílias expropriadas. Olhando para o desenvolvimento histórico das estruturas familiares a partir da perspectiva materialista, Engels argumenta que a ordem social em que vivem os homens de determinada época está condicionada pelo desenvolver-se das forças produtivas, do trabalho humano. Isso significa que a organização política e até mesmo familiar do homem se dá, com inúmeros nexos e mediações, a partir da garantia do suprimento das necessidades mais fundamentais da reprodução da vida – desenvolvimento das forças produtivas e reprodução/perpetuação da espécie humana. A necessidade histórica de perpetuar dentro do núcleo familiar, passando de pai para filho, os instrumentos de caça e coleta e o rebanho criado pelo homem e, por isso, alterando a anterior divisão das famílias em gens matrilineares para famílias patriarcais monogâmicas, pontua, segundo Engels, a origem da opressão da mulher. Nesse sentido, o domínio dos homens sobre suas casas e mulheres coincide com o desenvolvimento da idéia de propriedade, materializada no que chamamos de herança, como uma forma de repassar aos seus filhos (e apenas os seus) os bens acumulados. Isso significou a obrigatoriedade de garantir a legitimidade dos filhos. É como parte deste processo que vai surgindo com grande força na sociedade o direito paterno e a monogamia, que conformam o chamado patriarcado. O que então surgiu séculos antes do capitalismo, combinado a ele se transforma num pilar da exploração capitalista, pois o papel da mulher na família permite aos exploradores que não tenham que arcar com a manutenção da vida dos operários, que será garantida pelas mulheres (alimentação, roupa limpa, cuidado com as crianças).
Com esses contornos, durante séculos, as mulheres se configuraram como um grupo socialmente subordinado, cuja sexualidade, para garantir a eficiência da herança, sempre foi especialmente reprimida. A idéia de que as mulheres pudessem ter autonomia sobre seus corpos e também sobre sua sexualidade, questionando o papel que cumprem em seus lares, subjugadas a uma estrutura familiar opressora, sempre pareceu perigosa para a classe dominante. Estes temiam que as mulheres tomassem consciência de sua potencialidade revolucionária ao perceber que a sociedade capitalista é incapaz de acabar com a opressão de gênero e por isso seria necessário se aliar a única classe capaz de subverter a ordem, a classe trabalhadora. A história nos mostrou que nos grandes processos de luta de classes as mulheres fizeram importantes experiências na divisão do trabalho cotidiano e político avançando na conquista da consciência política que a sociedade burguesa jamais nos permitirá. Aliado a isso, a idéia de que a mulher, seu corpo e subjetividade, devem ser exclusividade do marido está relacionada ao fato desta ser considerada mais uma das propriedades privadas do homem em seu núcleo familiar, sendo assim um ser cuja vontade a ele seria submissa. Ainda que essa opressão se dê, em diferentes contextos históricos, de forma mais aberta ou mais dissimulada, o fato é que muitas mulheres seguem vivendo de forma frustante, muitas vezes como “proletárias do proletário”, nas palavras de Flora Tristán, uma importante lutadora do século XIX, que utilizou essa frase para exemplificar a relação de desigualdade que existia dentro dos matrimônios entre a classe trabalhadora.
Do corpo ideal ao corpo vendido
Toda essa estrutura patriarcal subordina as mulheres ao papel de objeto: se antes a mulher era vendida como uma reprodutora pelos pais à um marido, hoje seu corpo é vendido em comerciais de cerveja, por exemplo. A democracia burguesa não nos deu o direito de não ser “coisa”, ao contrário, naturalizou sermos comparadas a animais irracionais e objetos (“éguinha pocotó”, “cachorras”, “mulher melancia” etc.). Isso porque a sexualidade feminina é definida segundo o prazer masculino (muitas vezes à força), tendo seus corpos estigmatizados por um modelo de beleza alucinante e inalcançável, que também acaba reforçando outras opressões, pois se trata de um esteriótipo de beleza pautado nas pelas brancas, cabelos lisos, o corpo esbelto, e, além disso, na juventude.
O capitalismo abre as portas então para uma apropriação mercadológica dos corpos femininos, a começar por essa ditadura do padrão de beleza, que se expressa desde produtos que não atendem a pessoas fora desse padrão, até as relações de afetividade, cujo valor principal em nossa sociedade são as aparências e estes mesmos padrões. Desde aí o corpo feminino passa a ser um objeto sempre a se modernizar conforme as “novas tendências” ditadas pela indústria da moda e do “comportamento”. Por trás dos corpos “perfeitos” nas revistas, estão cada vez mais casos de jovens (quase crianças) vítimas da anorexia, ou mulheres com deformações e mutilações por conta de cirurgias na busca por um corpo “perfeito” – o que já levou muitas mulheres a perderem a vida.
Mas essa é somente uma das facetas que podemos falar. A idéia de que somos propriedade dos homens se expressou, por exemplo, em Minas Gerais, com o assassinato, aparentemente sem motivo, de diversas mulheres desde o começo do ano. As investigações encontraram um padrão nas escolhas das vítimas: eram todas mulheres. Somamos a isso os casos de assédio sexual nos locais de trabalho, que são utilizados como forma de chantagem com as trabalhadoras. E também os escandalosos casos de assédio e estupro nas moradias estudantis da USP e dos campi da UNESP que permanecem no “silêncio dos corredores” dessas moradias. Mas é preciso entender ainda mais profundamente essa questão. No capitalismo, não somente se “vende” a idéia de um corpo feminino ideal e de que somos propriedade dos homens... no capitalismo se vendem os corpos femininos. Mulheres são vítimas de poderosas redes de tráfico de mulheres, que contam muitas vezes com a cumplicidade de orgãos do governo ligado a indústria do turismo que incentivam a idéia da “mulata” brasileira como “patrimônio histórico” do país, mulheres essas que são destituídas da opção de terem uma vida e um emprego pleno, mas transformadas em mais uma mercadoria para aumentar as riquezas de um punhado de empresários. Os dados referentes ao tráfico internacional são estarrecedores: dos brasileiros que cruzam o Atlântico vítimas do tráfico, 90% são do sexo feminino. Espanha, Holanda, Itália, Portugal, Suíça e França são os principais destinos das brasileiras, e suas origens são majoritariamente dos estados de Goiás, São Paulo, Ceará, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Na Europa cerca de 500 mil mulheres são traficadas por ano, sendo desse total, 75 mil o equivalente a mulheres brasileiras, ou seja, 15% das vítimas. Em relação às redes de tráfico dentro do país, as regiões mais atingidas pelo tráfico de mulheres, crianças e adolescentes são a Norte e a Nordeste, as mais pobres do Brasil. Amazonas, Maranhão e Pernambuco lideram o ranking nacional, onde milhares de mulheres são levadas para zonas de garimpo e para o turismo sexual, assim como países vizinhos como Guiana Francesa, Venezuela, Bolívia e Suriname segundo a Pesquisa Sobre Trafico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf).
Nós somos sujeito, e não objeto
O fato de milhões de seres humanos serem explorados para que se mantenha no poder uma minoria é um princípio que potencializa ainda mais essa estrutura patriarcal. Por isso, toda e qualquer forma de divisão dentro da classe trabalhadora é muito útil à classe dominante, pois dificulta que as trabalhadoras e trabalhadores se enxerguem enquanto uma mesma classe. Ao mesmo tempo, é uma forma de fortalecer a exploração da classe dominante, que se utiliza de todas as formas de opressão para disseminar os piores preconceitos, naturalizando diferenças salariais e condições de trabalho pelo sexo, por exemplo. Queremos dizer um não a tudo isso. Queremos dizer que o fato das mulheres viverem nessa miséria, condena a sociedade a não poder avançar nas suas mais mínimas necessidades. Que é por isso, então, que as mulheres devem se colocar como sujeito de suas próprias vidas, se organizando politicamente e se levantando contra esta ordem. E, particularmente, devem enxergar na classe trabalhadora um aliado estratégico. Porque, como demonstramos acima, essa ordem patriarcal que nos condena a ser propriedades de terceiros, hoje é garantida pelo capitalismo que potencializa assim nossa opressão, nos explorando duplamente, em nossos locais de trabalho e também em nossa segunda jornada, por meio do nosso trabalho não pago em nossos lares.
Por isso, exigimos educação sexual em todos os níveis do ensino público, sem intervenção da Igreja, para que as jovens possam conhecer e desfrutar de sua sexualidade como decidam. Exigimos punição a todos os estupradores e violentadores que seguem impunes em nosso país. Exigimos o direito ao aborto legal, livre, seguro e gratuito para que as mulheres possam decidir sobre seu próprio corpo com a autonomia que devem ter. Exigimos o direito à maternidade plena, com possibilidade de atendimento de qualidade nos hospitais públicos. Exigimos o fim das redes de tráfico de mulheres e crianças e a conivência dos governos. Exigimos o fim das ditaduras de uma beleza inalcançável, de padrões racistas, da propaganda abusiva. Mas acreditamos que a luta por todas essas reivindicações é inseparável da luta pelo fim desse sistema social e seu Estado, ou seja, é inseparável da luta por uma outra sociedade livre de toda a exploração e opressão que hoje condenam a humanidade, mas que aprisionam de forma mais cruel a nós mulheres.
*Diana Assunção é trabalhadora da USP e dirigente da LER-QI. Livia Barbosa é assistente social e Babi Dellatorre estuda na UNESP de Rio Claro. Todas integram o grupo de mulheres Pão e Rosas.
[1] Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (Unodc)
[2] Agência de Notícias dos Direitos da Infâncias (ANDI)
[3] Também a homossexualidade de homens e mulheres.