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sábado, 4 de outubro de 2008

Texto de referência para a discussão sobre o Aborto [3]

Direito ao aborto - Conquistar nossos corpos, decidir sobre nossas vidas

Barbara Funes (integrante da agrupação Pan y Rosas - Argentina)

14 de fevereiro de 2005

A primeira perversão é o silêncio. Todas as estatísticas existentes sobre os abortos clandestinos e as mortes e danos irreparáveis que produzem na saúde das mulheres dos setores populares são apenas estimativas. Isso porque a penalização do aborto implica que sua prática e suas consequências funestas sejam caladas.

De acordo com o Instituto Alan Guttmacher[1], na América Latina se calcula que o número anual de aborto chega a quatro milhões e 119 abortos de cada 100 mil terminam na morte da mulher. Diferentemente, nos países aonde o aborto é legal, essa cifra é de entre 0,2 e 1,2 a cada 100 mil abortos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) calcula em 6 mil o número de mortes na região por abortos sépticos, ou seja, abortos clandestinos ou mal praticados[2].

A América Latina e o Caribe são consideras as regiões com a taxa de abortos inseguros mais elevada a nível mundial: anualmente se praticam 3,7 milhões de abortos, pelos quais se estima uma taxa de 26 a cada mil mulheres em idade reprodutiva. Os abortos inseguros são a causa de 25% de todas as mortes femininas que ocorrem nos países latino-americanos e no Caribe, e de cerca de 12% na África e de 10% na Ásia[3]. Se calcula que no México ocorrem aproximadamente 500 mil abortos provocados, sendo a terceira ou quarta causa de morte entre as mulheres, enquanto que ao menos mil morrem a cada ano como resultado de abortos mal praticados[4]. Em Chiapas cerca de 20% das mulheres morrem por esta razão e uma a cada dez que engravida recorre aos abortos clandestinos[5]. No Uruguai se realizam 33 mil abortos por ano[6].

Na Argentina se praticam cerca de 750.000 abortos[7]. Entre 1999 e 2002, as mulheres que foram atendidas por esta causa nos hospitais públicos aumentaram em 46%[8]. As hospitalizações de mulheres por complicações de abortos são mais de 70.000 por ano[9]. Somente em Buenos Aires, a cada treze dias morre uma mulher por consequência de abortos clandestinos enquanto 32.000 ingressaram aos hospitais públicos por esta causa de acordo com as estatísticas do Ministério da Saúde. No Brasil, a estimativa é que ocorram de 750 mil a 1 milhão de abortos clandestinos por ano, cujas complicações constituem a quarta causa de morte materna no país.

Isto quer dizer que as mulheres trabalhadoras e de setores populares que não contam com os meios para custear um aborto clandestino asséptico devem escolher entre ter um filho que não desejam ou colocar em risco sua vida, deixando-a nas mãos das máfias da saúde.


A história da maternidade compulsiva

Depois da revolução burguesa de 1789 na França, o Estado começou a tomar a maternidade como uma questão pública. Diderot escreveu que "um Estado é tão mais poderoso quanto mais povoado se encontre (...), e quanto mais numerosos sejam os braços empregados no trabalho e na defesa"[10]. Assim o Estado estabeleceu como tarefa natural e autêntica das mulheres a maternidade e a nossa capacidade biológica começou a reger nossas vidas. Foram estabelecidas políticas de saúde pública, incluindo a regulação e formação de obstetras e parteiras e a erradicação gradual das parteiras tradicionais (caseiras), onde os profissionais da saúde, verdadeiros agentes do Estado, interviam no corpo e na vida das mulheres. O direito de propriedade se aplicou "legalmente" sobre nós mulheres.

Desde então, o Estado coloca em nossa cabeças que nosso dever é sermos mães, aconteça o que acontecer. Querem que sejamos incubadoras submissas ao negarmos o direito de decidir sobre nossos destinos. Necessitam que a miséria se expanda à medida que se expande a população. A força de trabalho humana é o denominador comum em todo tipo de mercadorias, assim como o abastecimento dos serviços tais como transporte, energia, telecomunicações, educação, saúde. Mas enquanto produzimos enormes lucros, eles se apropriam da imensa maioria e nos destinam o mínimo para subsistir.

A realização das tarefas domésticas em forma invisível e gratuita que realizam as mulheres dos setores populares para garantir a subsistência da classe operária e os salários mais baixos para as trabalhadoras, são verdadeiros mecanismos de pressão para diminuir os salários de todos e todas. Necessitam que a classe operária se reproduza para ter um exército industrial e sua reserva com milhões de trabalhadoras e trabalhadores desempregados para pressionar os salários pra baixo.

A época imperialista tem regulamentado a vida sexual de homens e mulheres ao redor de um objetivo fundamental: a reprodução. Ao dizer de Antonio Gramsci "...não pode desenvolver-se o novo tipo de homem exigido pela racionalização da produção e do trabalho enquanto o instinto sexual não tenha sido regulado de acordo com esta racionalização, não tenha sido também racionalizado"[11].

Seu duplo discurso pretende nos enganar: o mandato imperativo é ter filhos, e por isso o aborto é ilegal. Mas as trabalhadoras que efetivamente cumprem com o mandato se encontram com a saúde pública que se deteriora cada vez mais e com salários de miséria que não são suficientes para garantir o cuidado de seus filhos durante suas horas de trabalho. A imensa maioria das grandes empresas e das dependências do Estado não fornecem creches gratuitas, e no melhor dos casos dão subsídios que nunca cobrem o custo das creches privadas. As formas de opressão e exploração para as trabalhadoras se multiplicam de maneira exponencial.

Por outro lado, a Igreja, essa antiga misógina, se tem colocado como defensora incondicional da "criança por nascer", como defensora da vida e da família como célula social. E por que? Rastreando suas posições ao largo da história, se tem colocado como defensora da maternidade, já que necessitou que seus fiéis se reproduzissem a partir dos nascimentos para que suas idéias se propagassem[12].

Mas existe outra razão: todas as criaturas são obras de "Deus". Que as mulheres determinemos por nós mesmas se desejamos ou não dar a vida, é um fato que coloca em questão todo o sistema de idéias armado pelos teóricos da Igreja. Seu deus onipresente é alguém em quem deposita sua fé para que resolva os problemas da humanidade. Portanto, o poder deste "deus" determina a vida e a morte de todos os seres vivos. A humanidade deve submeter-se ao destino já escrito, a um poder externo. Estes conceitos resultaram legitimadores das classes dominantes por centenas de anos. E nos tem imposto a noção de que ninguém pode mudar a realidade e nem construir seu próprio destino. Esta ideologia constitui um dos pilares fundamentais da dominação de uma minoria parasitária sobre a classe trabalhadora.

Mas é a mesma Igreja obscurantista a que criou a Inquisição que custou numerosas vidas, em sua maioria mulheres, julgando a todas e todos aqueles dos quais se suspeitava que não acreditavam incondicionalmente em suas verdades. Pior ainda, seu principal objetivo mediante a Inquisição não foi a matança em si mesma, senão domesticar os espíritos rebeldes da época, mediante torturas e humilhações. Em tempos mais recentes, esta defensora da vida apoiou a ditadura militar e hoje, em toda a América Latina se tornam públicos centenas de casos de padres abusadores de crianças e mulheres.

Este ano, no México se tornou público que os 30 milhões de pesos que o grupo ultra conservador Próvida[13], ligado à Igreja e ao Opus Dei, recebeu do governo federal para seus programas internos, U$ 12.892.576 foram utilizados para gastos com publicidade anti-aborto. Enquanto isso, a Secretaria de Saúde (SS) exerceu nesse mesmo ano, U$ 9.914.456 em seus programas de prevenção da AIDS. A assistência da AIDS passou de U$ 208.000.000 aprovados pela Câmara de Deputados em dezembro de 2002, aos U$ 178.000.000[14].


Legalização ou descriminalização? Um debate necessário

Historicamente, o movimento de mulheres se debateu entre estas duas alternativas. A legalização do aborto implica a legitimação por parte do Estado destas práticas, mas não necessariamente garante o acesso gratuito aos serviços médicos para realizá-los. A descriminalização não quita o caráter de "atentado contra a vida" da interrupção voluntária de uma gravidez, mas tampouco nos assegura políticas de saúde pública que garantam a gratuidade tanto da realização dos abortos como de sua prevenção.

Para nós que impulsionamos a agrupação de mulheres Pan y Rosas - Argentina somos as mulheres trabalhadoras e de setores populares quem devemos encabeçar a luta pelo direito ao aborto livre e gratuito e quem pode garanti-lo efetivamente. Em 1917 na revolução operária que ocorreu na Rússia, foi o Estado dos Sovietes[15] onde as mulheres conseguiram pela primeira vez, entre outros direitos, o direito ao aborto[16]. O que está em jogo é nossa vida e o direito de decidir sobre nossos destinos. Lutamos pela liberdade de decidir se queremos ter filhos ou não, quando e com quem tê-los. Lutamos para eliminar a tutela da Igreja e do Estado sobre nós. Exigimos contraceptivos gratuitos para exercer livremente nossa sexualidade. Exigimos o direito ao aborto livre, seguro e gratuito para todas as mulheres dos setores populares. Que o Estado garanta os serviços médicos necessários nos hospitais públicos, e que sejam de qualidade.

Quanta confiança em nós mesmas ganhariamos se nos apropriassemos de uma vez e para sempre de nossos corpos! Somente organizadas de forma independente do Estado, da Igreja e dos partidos patronais, confiando em nossas próprias forças, podemos exigir nossos direitos, inclusive arrancar-lhes leis que nos beneficiem. Julieta Lanteri[17], uma feminista do começo do século XX declarou uma vez que "Os direitos não se mendigam. Se conquistam." Nós acreditamos que as mulheres devemos lançar-nos à conquista de nossas vidas. Por isso lutamos pelo direito ao aborto livre e gratuito.

Notas
1. Organização estadounidense sem fins lucrativos orientada em pesquisas sobre a saúde sexual e reprodutiva.
2. Dados extraídos da Cimac Noticias “América Latina: entre desinformación y condena”.
3. Dados extraídos da Cimac Noticias “Demanda personal médico información de marco legal sobre aborto en México"
4. Dados extraídos da Cimac Noticias “Penalización de aborto aumenta su clandestinidad” , por Rafael Maya.
5. Dados extraídos da Cimac Noticias “Abortos mal practicados elevan índice de muerte materna” por Sandra de los Santos Chandomí.
6. Dados extraídos da Cimac Noticias “Derechos sexuales y reproductivos, lo que se discute en Uruguay”, por Isabel Villar, jornalista da República de las Mujeres de Uruguay.
7. Dados extraídos de “Derecho a no parir” Página 12, suplemento LAS 12, 17/10/2003, Lila Pastoriza.
8. Dados extraídos de “Libertad de vientres” Página 12, suplemento LAS 12, 26/09/2003, Martha Rosenberg.
9. Dados extraídos do jornal Clarín de junho 2004.
10. Giulia Galeotti “Historia del Aborto”.
11. Antonio Gramsci “Americanismo y fordismo”
12. Guy Bechtel, “Las cuatro mujeres de Dios. La puta, la bruja, la santa y la tonta”.
13. O grupo Provida na Argentina foi um dos principais impulsionadores da postulação da juíza Carmen Argibay por ser atéia, solteira, sem filhos e por estar a favor do aborto a título pessoal.
14. Dados extraídos da Cimac Noticias, “Canaliza Provida 13 millones de pesos a publicidad antiaborto”, por Rafael Maya.
15. Conselhos operários, de camponeses e de soldados que tomaram em suas mãos os destinos de seu país. São organismos de democracia direta onde as trabalhadoras e os trabalhadores tiveram hegemonia.
16. Andrea D’Atri “Pão e Rosas. Identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo”.
17. (1873-1932) Faminista de origem italiana radicada na Argentina em sua infância, iniciou como médica em 1907. Lutou pelos direitos políticos e civis das mulheres. Foi candidata a deputada nacional em 1919 com o apoio da União Feminista Nacional e do Comitê Pró Direito do Sufrágio Feminino. Entre suas propostas, além do direito ao voto das mulheres, colocava a jornada reduzida para as trabalhadoras, salários iguais para mulheres e homens e divórcio absoluto.

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