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terça-feira, 15 de outubro de 2013

O governo Dilma e os direitos democráticos

Por: Ana Carolina Fulfaro, militante do Pão e Rosas de Marília


Para a ampla maioria da população pobre e da classe trabalhadora brasileira, o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), com a figura de Lula, o “filho da exclusão social”, parecia vir como um governo que de fato iria atender aos direitos da maioria da população. Após o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em que os índices de desempregos foram altíssimos, o PT com toda sua roupagem popular e democrática (mas dando continuidade às políticas neoliberais) fez diminuir os índices de desemprego e proporcionar melhores condições de vida para a população, com os programas de assistência social, expansão de créditos e etc. Contudo, as estatísticas, puramente quantitativas e facilmente manipuláveis, não mostram como esses milhões de empregos criados e essas melhorias de vida se dão de fato na vida real.
A criação de empregos é um fato consumado. Porém, em sua grande maioria, são empregos temporários, terceirizados, com baixos salários e com alta rotatividade, não proporcionando nenhuma estabilidade e nem melhoria de vida substancial à população. Enquanto que, de acordo com o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos) o salário mínimo deveria ser de R$2.616,41 (para suprir as necessidades básicas) esses empregos chegam a pagar até um pouco mais de um salário mínimo, que hoje corresponde a R$678,00, sendo que em São Paulo, por exemplo, o nível de rotatividade em 2010 foi de 63%, o que significa que em menos de 2 anos, quase todos os trabalhadores tendem a ser demitidos e obrigados a entrar novamente nas filas dos desempregados.
Cada vez mais os capitalistas foram encontrando meios para aumentar seus lucros, sempre através da exploração e da mais-valia gerada pelo trabalhador. De várias maneiras isso já se deu: as horas de trabalho já foram esticadas ao máximo, a produtividade do trabalho foi forçada, diversas maneiras para tal fim foram sendo aperfeiçoadas de acordo com o interesse dos patrões. O trabalho terceirizado é uma expressão dessa lógica.
A redução de custos proporcionada por esse regime ultraprecarizado de trabalho é enorme, pois além dos patrões não terem custos com a folha de pagamento, também não terão que arcar com direitos trabalhistas mínimos. E em contrapartida, os trabalhadores são obrigados a se submeter a empregos sem nenhuma garantia, com salários baixíssimos e enorme exploração. Estão sujeitos a mais humilhação, pois há toda uma hierarquização social a partir da lógica de “você vale o quanto você ganha”, colocando-os como os empregados do mais baixo escalão, contribuindo também para uma maior divisão da classe trabalhadora.
            Para intensificar ainda mais toda essa precarização do trabalho, o governo, aliado aos grandes empresários, quer aumentar as possibilidades de terceirização. Atualmente, em tese, só é possível que uma empresa tenha trabalhadores terceirizados em suas “atividades meio”, enquanto que há um projeto de lei, a lei Mabel (PL 4330), que legalizaria a terceirização nas atividades fim das empresas. Por exemplo, em uma montadora de automóveis, as atividades meio, que são terceirizadas são as de limpeza, transporte, entre outras que não estariam relacionadas diretamente com a produção do automóvel. Com essa lei, até a própria montagem dos automóveis poderá ser terceirizada.
Quem ocupa os postos de trabalho mais precarizados no Brasil é a população negra e analisando estatísticas referentes a salários em relação ao sexo, homens brancos ganham mais que mulheres brancas, que ganham mais que homens negros, que ganham mais que mulheres negras. Ou seja, são as mulheres, sobretudo as negras as que mais ocupam postos de trabalho precarizado. Nota-se, nesse ponto, que a origem patriarcal e escravagista do país ainda permanece de maneira intensa, e tal hierarquização social, é muito utilizada pelos capitalistas justamente para a manutenção de sua ordem de lucros e exploração.
A mão de obra feminina foi incorporada massivamente pelo capitalismo com a industrialização como uma força de trabalho mais barata, o que possibilitou uma maior obtenção de lucros. Contratando mulheres e crianças com salários menores, pode-se abaixar o salário dos homens também, o que ocasionou uma divisão dos trabalhadores, já que as mulheres estavam “roubando” os postos de trabalho dos homens. As tarefas domésticas, a alimentação e cuidado dos filhos e demais serviços que são condições básicas para a vivência das pessoas, foram mantidas como tarefas femininas. Logo, além de trabalharem fora, as mulheres tem outra jornada de trabalho dentro de casa.
Todo esse cenário ainda está presente. Mas há ainda formas muito mais sofisticadas que o capitalismo se utilizou para dividir a classe trabalhadora. A própria cultura machista que coloca as mulheres de maneira menor que os homens e enquanto propriedade deles, transmitida por via de instituições como a Família, a Escola, a Igreja, o Estado, é uma expressão, pois submetendo as mulheres aos mandos e desmandos de seus maridos, fazendo com que se calem e suas vozes não sejam consideradas, dividindo-as através da competição feminina para ser a melhor diante dos olhos do homem, fazendo com que se naturalizem a existência de divisões de papéis entre homens e mulheres, assim como posturas baseada em determinismos biológicos, incitando que o homem a violente de diversas maneiras e a mantenha enquanto sua propriedade. São estes alguns dos mecanismos que servem também a naturalização de uma ordem social que embrutece e que não permite que mulheres e homens se enxerguem enquanto membros de uma mesma classe social explorada.
Independente da classe social, todas as mulheres sofrem com a violência machista de distintas maneiras ou não. Mas agora com uma mulher no mais alto posto de poder do país, o que poderia ter representado avanços nos direitos dessas mulheres - suposição baseada em uma falsa ideia de que as mulheres constituem-se enquanto classe, portanto, enquanto defensoras dos mesmos direitos – representou e se efetivou enquanto um governo de manutenção da ordem machista e até colocando retrocessos. 
Logo durante as eleições para a presidência de 2010, Dilma Rousseff aliou-se aos setores religiosos como meio eleitoreiro e já de início declarou que em sua gestão não iria legalizar o aborto. A morte de mulheres por abortos clandestinos é uma das principais causas de mortalidade materna no Brasil, sendo que em alguns estados chega a ser a principal. Essas mortes têm classe e cor: são as mulheres trabalhadoras e negras as que ficam com sequelas para o resto de suas vidas, sujeitas a métodos ultra precarizados e perigosos colocando suas próprias vidas em risco.
A criminalização do aborto, além de ser um ataque a autonomia das mulheres em decidirem sob seus próprios corpos, é também um caso de saúde pública, visto que mesmo com sua proibição as mulheres abortam e estão morrendo. E porque então, não se trata esse direito enquanto tal? Por mais que o Estado devesse ser laico, os setores mais conservadores da igreja católica e evangélica são parte constitutiva do governo. São parte da burguesia influenciando diretamente as ações que serão tomadas. Para demonstrar isso, são vários os exemplos possíveis. Ainda com Lula na presidência, em 2008, foi firmado o acordo Brasil-Vaticano, concedendo vários privilégios à Igreja católica, além de instaurar o ensino religioso nas escolas públicas. O ensino dos preceitos religiosos afirma, conforme presente na própria bíblia católica, tanto a submissão das mulheres aos homens, quanto o ataque aos setores homoafetivos, colocando suas vidas como pecaminosas e desviantes. Nesse ponto, é importante destacar que não somos contra as pessoas terem suas religiões, o problema é quando setores religiosos interferem nos nossos corpos e em nossa autonomia e liberdade de decisão e em nossa maneira de viver.
De um lado, houve a aprovação do ensino religioso, e de outro, houve o veto ao kit anti-homofobia que seria destinado a combater a homofobia nas escolas públicas. No governo Dilma, os ataques aos direitos dos setores oprimidos se tornaram ainda mais evidentes. Nesse ano de 2013, vimos ser eleito para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias o deputado e pastor Marcos Feliciano (Partido Social Cristão – SP), que foi motivo de muitas revoltas por suas declarações racistas, machistas e homofóbicas. Vimos a proposta de projeto de lei que dá direitos para fetos, criminalizando o aborto até em casos de estupro (este, que por mais que atualmente seja legalizado, não é de fato garantido). Vimos propostas de bolsas para mulheres que foram estupradas terem os filhos com todo o peso dessa violência.
O alto conservadorismo existente ainda hoje em muitos lugares do mundo faz com que formas de manutenção da opressão as mulheres continue intensamente. Nos é colocado que há uma essência feminina e outra essência masculina determinadas biologicamente, o que não é afirmado somente por algumas religiões, mas também em diversos outros âmbitos como na mídia, escola, medicina, etc. Dessa maneira, há padrões sociais que devemos seguir que relacionam o fato de ser mulher com a vagina, com o dever da feminilidade e da heterossexualidade. Já com os homens o caminho a seguir é de homem, com pênis, com dever de ser heterossexual e seguindo os padrões de masculinidade. Esses padrões normativos trazem consigo papeis sociais, e quando não são seguidos, geram muita violência. Às mulheres está destinada a maternidade, o cuidado, a emoção, o âmbito privado representado pelos afazeres domésticos. Aos homens, desde criança lhes é ensinado a ocuparem os espaços públicos, a serem corajosos e com iniciativa. Mas também lhes é ensinado o uso da violência e às mulheres, a submissão a ela. Por mais que os arranjos familiares não se limitem a esse exemplificado aqui, existe uma idealização desse modelo.  Há o homem, provedor da família e a mulher cuidadora do lar, das crianças e de seu homem.
Segundo Marx, a primeira expressão de propriedade privada foi a propriedade da mulher e dos filhos pelo homem. Nas relações homem-mulher a propriedade e dominação dela por ele é muito presente. No modelo de família nuclear monogâmica é o exemplo máximo disso, primeiro porque a mulher deverá servir e obedecer ao marido – ensinamento muito bem repassado através de algumas religiões -, e segundo porque a monogamia existe somente para a mulher enquanto propriedade do homem, enquanto que os casos extraconjugais masculino já é algo instituído e aceitado nesse modelo, caso contrário a prostituição não estaria aí.
Além desse papel ensinado em menor ou maior grau para a maioria das mulheres, outra expressão de toda essa lógica é a cultura do estupro. O corpo das mulheres é visto como algo penetrável. A todo o momento as mulheres são assediadas, além de terem de se preocupar em andar sozinhas, pois podem passar por uma violência sexual extrema, que já vivenciam em diversos outros momentos de outras maneiras quando são vistas como pedaço de carne. As mulheres são ainda culpabilizadas por serem vítimas de assédios e estupros, as vezes por supostamente se insinuarem utilizando roupas curtas e sendo sensuais demais. Do outro lado, a atitude do homem em violar será apenas uma expressão de seu instinto sexual masculino.
Com a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016, o turismo sexual e os assédios se intensificarão ainda mais. No cenário de preparação para a Copa, a rede Globo em seu site esteve divulgando curso de línguas para prostitutas. Ou seja, em vários âmbitos como na mídia, o turismo sexual é estimulado, pois assim o país atrairá mais turistas para vir consumir. Nesse caso, é o consumo das mulheres, consideradas objetos e pedaços de carne que é estimulado.
Em suma, porque Dilma, Cristina Kirchner, Angela Merkel, enquanto mulheres que ocupam altos postos de poder político, enquanto sofredoras de machismo e opressão, não lutam pelo direito de suas “iguais”? As mulheres são um grupo policlassista, ou seja, há mulheres da classe burguesa e há mulheres da classe trabalhadora, há mulheres que exploram e há mulheres que são exploradas, há mulheres dos dois lados da luta de classes.
No capitalismo, os interesses da classe burguesa, detentora dos meios de produção, e os interesses da classe trabalhadora que vende sua força de trabalho e que produz todas as coisas materiais, mas que tem todo seu trabalho expropriado, são inconciliáveis. Sendo assim, por mais que tenhamos muito contra o que lutar, como contra o racismo, machismo, homofobia, xenofobia, por dentro do sistema capitalista os limites são enormes. Dessa maneira, não basta ser mulher para lutar pelos direitos de todas as mulheres, não basta ser negra para lutar pelos direitos dos negros, pois o interesse de classe pode ser distinto.
Por tudo isso, se o governo e as vias institucionais servem à classe dos capitalistas, não será por essa via parlamentarista que os direitos das mulheres trabalhadoras serão conquistados até o fim. Já houve muitos avanços. Mas não são avanços para todas. Já que, fundamentalmente, a igualdade burguesa, na verdade é uma desigualdade de acesso aos direitos elementares como saúde, educação, moradia e etc. Lutar somente pela igualdade entre homens e mulheres é muito abstrato, pois será que é possível que, dentro do capitalismo, a mulher trabalhadora tenha igualdade com o homem burguês? Sabemos que não.
É somente pela via revolucionária, pela supressão desse sistema capitalista que explora e mata mulheres e homens é que todos os direitos serão arrancados, é que todos os grilhões da propriedade privada da matéria e das relações pessoais serão destruídos. Contudo, não acreditamos que os direitos dos setores oprimidos serão ganhos de mão beijada, somos nós que temos que ser linha de frente das nossas próprias lutas. Tampouco acreditamos que com a revolução socialista todos os problemas já estariam superados, como foi afirmado por muitos grupos de esquerda. A luta pela conquista dos direitos democráticos, contra o machismo, o racismo a lesbotranshomofobia deve ser uma luta diária em todas as nossas relações, concomitante à luta pela superação do domínio do capital. Essas lutas estão intrincadas, fazem parte de uma só luta pela emancipação humana de maneira geral.
Após a revolução socialista ocorrida na Rússia em 1917, com a consolidação de um Estado gerido pela classe operária, as mulheres conquistaram vários direitos até então não visto em nenhum outro Estado capitalista, como o direito ao aborto, o direito ao divórcio, a criação de lavanderias, creches e restaurantes públicos, a equiparação salarial entre homens e mulheres, etc. A consolidação desses direitos esteve longe de ser o ideal, tanto por questões econômicas quanto da própria consciência de trabalhadores e camponeses. Lênin, em um discurso chamado “às operárias”, disse que elas deveriam lutar para ocupar os mesmos postos de direção que os homens ocupavam, justificando que “a igualdade ante a lei, não é a igualdade frente a vida”, por isso as leis deveriam sim ser garantidas, mas a luta seria pela igualdade sobretudo perante a vida, por transformações reais nas relações humanas.
Com a burocratização da União Soviética e a ascensão de Stalin ao poder, pouco a pouco todos os direitos garantidos foram sendo retirados. Ao invés da garantia do aborto e do livre divórcio, passou-se a exaltar a imagem da mãe e da família nuclear, até com prêmios para as mulheres que tivessem um maior número de filhos em um momento em que precisavam de reforços para morrer na guerra e peões para reconstruir o país.
O impacto do chamado stalinismo nos partidos de esquerda foi enorme no mundo inteiro, inclusive no Brasil, tanto nas políticas e estratégias utilizadas para alcançar a revolução, quanto no tratamento com as questões das opressões. Daí vem a ideia de que uma vez conquistada a revolução todos os direitos das mulheres seriam garantidos – o que era dito concomitante a reprodução do machismo dentro dos próprios grupos de esquerda.
Nesse sentido, tanto a postergação das lutas pelos direitos das mulheres, quanto a degeneração dos chamados “socialismos reais” geraram um descrédito em relação ao marxismo por parte de grupos feminista, ao mesmo tempo em que houve uma ofensiva da ideologia burguesa com uma suposta melhoria de vida expressa pelo consumismo, com o individualismo sendo cada vez mais ressaltado, a ascensão dos direitos humanos e a ideia de que a classe operária não existe mais. Com tudo isso, a luta de muitos grupos feministas passou a se dar estritamente através da via institucional, reivindicando garantias de direitos nas leis, mas muitas vezes sem considerar os limites dessa via, que não assegura direitos iguais para todas as mulheres, já que aí há uma distinção fundamental de classe social. Há também a própria instabilidade na garantia desses direitos, já que em momentos de crise os primeiros cortes de gastos são dos setores sociais oprimidos.
O movimento feminista não é algo homogêneo. São distintos grupos e distintas vertentes políticas. A intenção não é tratar profundamente sobre os meandros de toda essa discussão. A certeza posta aqui é da urgência de pensarmos na luta das mulheres, negras e negros, homoafetivos, transexuais, travestis, indígenas, enfim, todos os setores oprimidos, como parte fundamental e interligada da luta revolucionária, sendo que devemos sim lutar pela conquista de direitos e por transformações culturais, mas sabendo que a opressão não pode ser destruída até o fim por dentro desse sistema, e nenhuma outra forma de organização social poderá ser consolidada plenamente com base na opressão.
Por isso, o grupo de mulheres e diversidade sexual Pão e Rosas, enquanto grupo combativo, classista, anticapitalista e revolucionário, deve estar a frente das lutas pelos direitos democráticos, mas também na luta contra o sistema capitalista e contra a burguesia, lutando contra o machismo existente dentro da classe, e também pela unidade da própria classe trabalhadora, sem se sujeitar aos patrões e nem aos homens que exercem papel de patrões dentro de casa, para que a operária não seja mais a operária do operário, e sim, que lutem lado a lado contra esse sistema que explora e oprime.
Em Marília, o grupo Pão e Rosas está sendo reconstituído nesse 2º semestre do ano de 2013, em frentes em outras cidades também estão - e imagino que sempre estará - em construção. Buscamos que de fato as mulheres trabalhadoras venham compor essa luta! O Pão e Rosas estará cumprindo seu papel quando Silvanas, Cleides, Tânias e tantas outras lutadoras, com a enorme força que demonstram em suas vidas diárias, sejam as linhas de frente dessa guerra!

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