Por Andrea D’Atri, especialista em Estudos da Mulher, fundadora do Pan y Rosas da Argentina e dirigente do PTS, Partido de los Trabajadores Socialistas.
Tradução de Ana Carolina Fulfaro e Flávia Ferreira
Texto publicado pela Revista Ideas de Izquierda, edição n.7, março de 2014.
Versão em espanhol: http://ideasdeizquierda.org/pecadoscapitales/#more-1258
A hipersexualização das imagens
publicitárias, os programas de televisão e as revistas; a inclusão
de personagens gays, lésbicas ou trans em novelas e filmes e, de
outro lado, a extensão do matrimônio igualitário em diversos
países e o desenvolvimento de espaços gayfriendlys
nas grandes metrópoles, poderiam nos fazer acreditar que a sociedade
contemporânea alcançou os ideais de “liberdade sexual”
reivindicados nos anos 60.
Nessa década, uma profunda “revolução sexual”
acompanhou a onda de radicalização social, política e ideológica,
desafiando as tradições de uma moral conservadora. Durante e depois
da Segunda Guerra Mundial – especialmente nos países centrais e
nas zonas urbanas -, a maior tecnificação do trabalho doméstico,
que reduziu o tempo necessário para sua realização, foi
pré-condição para a incorporação massiva das mulheres nas
universidades e no mercado de trabalho. Mais tarde, junto com a
massificação do uso de contraceptivos, essas condições
propiciaram a retardação da idade para o casamento e,
consequentemente, favoreceram o aumento das relações sexuais
“pré-matrimoniais”, a tendência à diminuição da taxa de
natalidade e a postergação da maternidade até idades mais
avançadas. A geração que cresceu sob essas condições sociais,
econômicas e políticas, deu origem a segunda onda do feminismo e ao
movimento de reivindicações da população não heterossexual,
pondo em cheque as normas que regem o comportamento sexual e as
relações sexo-afetivas.
Contudo, a liberdade sexual
conquistada durante aqueles radicalizados anos se reconfigurou nas
décadas seguintes com a força de derrotas sociais, políticas e
culturais, como liberdade de mercado: a voracidade capitalista
mercantilizou, em uma escala sem precedentes, tudo aquilo que a moral
burguesa havia construído como “vida privada” e que os
movimentos sociais tinham se esforçado para demonstrar que eram
construções sócio históricas, dispositivos biopolíticos, lógicas
culturais no marco das sociedades de classe. A identidade sexual, o
desejo e a fantasia se transformaram, então, em objetos de lucro, a
níveis industriais.
A
mercantilização da sexualidade
Com a liberação das fronteiras
para o fluxo de capitais e o colapso das economias dos países
semicoloniais, aumentou enormemente, não somente o deslocamento das
massas trabalhadoras, mas também, os “exilados” econômicos e o
tráfico de pessoas. Como parte deste fenômeno global, expandiu-se
em escala mundial o tráfico de mulheres para a exploração sexual,
reduzindo a prostituição individual e voluntária praticamente a um
conceito meramente acadêmico.
Além disso, a indústria
pornográfica - sob as condições criadas pelo desenvolvimento das
novas tecnologias, a revolução das comunicações e internet –
alcançou números astronômicos: se em 1975, nos EUA, a pornografia
hardcore
produziu um valor dentre 5 e 10 milhões de dólares, as estimativas
atuais rondam entre os 10 mil e 13 bilhões, dos quais, pouco menos
da metade seriam investimentos legais.
Em poucos anos, a pornografia abandonou a marginalidade quase
criminosa para se transformar em uma indústria próspera. Isso
propiciou, por sua vez, a sindicalização e o controle sanitário de
seus trabalhadores e trabalhadoras, a fama de produtoras, cineastas,
atores e atrizes que adquiriram renome no mercado e o desenvolvimento
de inúmeros subgêneros para satisfazer as mais variadas e ocultas
fantasias. Mas no limite da regulamentação e massificação deste
próspero negócio, surgiram não somente subgêneros críticos do
modo heterossexista e misógino que se representa habitualmente
nesses filmes – como a pornografia feminista, a pornografia gay,
lésbica, etc. – mas também, a produção e comercialização
clandestina de filmes nos quais as mulheres são submetidas sem seu
consentimento, como também, outras em que se registram torturas,
estupros e assassinatos reais para o “entretenimento dos
consumidores.
E assim como os corpos e as
fantasias tornaram-se mercadorias valiosas para a sede de ganho da
indústria do sexo, o mesmo aconteceu com a sexualidade
heteronomativa do casal monogâmico. Uma série de normas e
prescrições – exigências impossíveis de cumprir no acelerado e
competitivo mundo do trabalho flexibilizado e de turnos rotativos –
se impõem através de revistas, programas de televisão e
especialistas do sexo. Misturados com explicações supérfluas de
pretensões pseudocientíficas, como “A ejaculação precoce, um
problema dos dois” ou “A química do amor: como é o mapa de um
cérebro apaixonado”, as mídias nos oferecem os títulos que
instruem as mulheres ao amor romântico e ao casamento, ainda que
“modernizados”
em relação a esta hiperssexualização da cultura e gerando novos
nichos de mercado: desde os inofensivos “No escritório: como
encarar uma relação?”, até os mais ousados que propõem “Ponto
G: como aumentar o tamanho e a sensibilidade” ou “Sexo express:
os 9 melhores lugares para uma ‘rapidinha’”.
Artigos como os mencionados podem ser encontrados nas revistas de
domingo dos periódicos mais prudentes, que nos aconselham a ter um
melhor, maior, saudável (e “correto”, quer dizer, heterossexual
e monogâmico) desempenho sexual.
Tudo se vende, tudo se compra. Desde uma mulher, até o
joguinho sexual que as boas esposas adquirem numa reunião de amigas;
desde as fantasias mostradas em imagens cinematográficas, até os
medicamentos para tratar a disfunção erétil, que é vendido sob
prescrição médica. O que fazia parte desse complexo fenômeno
chamado de “vida privada” foi exposto na vitrine.
A
impotência sexual e
o consumo
À medida que o sexo se transforma
literalmente em “moeda corrente”, são aproveitados, ao mesmo
tempo, pelo capitalismo, o disciplinamento dos corpos e desejo
sexual. Enquanto aumenta a mercantilização da sexualidade,
paradoxalmente, a impotência sexual tem se transformado em um dos
motivos mais frequentes de consulta médica e psicanalítica.
Sob os ritmos do trabalho
flexibilizado e precário em que milhões de seres humanos foram
mergulhados, toda a vida ficou submetida ao contrato temporário: a
aceleração do ritmo dos processos econômicos acelerou também os
ritmos da vida social. As técnicas de produção e os processos
laborais se transformaram em voláteis, transitórios e acelerados;
tudo é instantâneo e descartável: desde as mercadorias até os
estilos de vida e as relações. Reproduzimos uma longa citação do
sociólogo Zygmund Bauman que representa o que foi assinalado: “Na
ausência de uma segurança a longo prazo, a ‘gratificação
instantânea’ é uma estratégia razoavelmente aceitável. (...). A
postergação da gratificação perdeu seu encanto. (...). As
precárias condições sociais e econômicas formam homens e mulheres
(ou os obrigam a aprender por mal) para perceber o mundo como um
recipiente cheio de objetos
descartáveis,
objetos para usar e
jogar; o mundo de
conjunto, incluindo os seres humanos. (...). É assim que a política
deliberada da ‘precarização’ levada adiante pelos operadores do
mercado de trabalho se vê auxiliada e instigada (e em seus efeitos é
reforçada) pelas políticas da vida, sejam estas adotadas
deliberadamente ou na falta de outras opções. Ambas produzem o
mesmo resultado: a decomposição e a restrição dos vínculos
humanos, das comunidades e das relações”.
Então, acabamos em uma armadilha:
nesse fluxo incessante, onde a tecnologia possibilita uma
hiperconexão global, que garante a comunicação sem obstáculo
geográfico nem temporal, a solidão tem se tornado um dos “maus”
da época. E o individualismo conduz a relações efêmeras,
superficiais e utilitárias, porque justamente o que se busca no
outro, não é o outro, mas alguém que remedeie o mal estar, o
“vazio interior” que conduz os vertiginosos ritmos da vida
contemporânea.
Daí que alguns especialistas falam da “sobrevalorização” (e
poderíamos adicionar, idealização) que adquire, novamente, a vida
de casal, como uma segurança utópica contra a solidão a que nos
confina a agitação de uma vida precária e completamente
flexibilizada.
A privatização dos serviços públicos e a
“desprivatização” da vida íntima foram acompanhadas de uma
política de ampliação da cidadania que conferiu maiores poderes ao
Estado sobre nossos corpos, nossas relações sexo-afetivas e nossas
práticas eróticas: a política de direitos, o mesmo movimento que
inclui proporções mais amplas da população – aqui se tem outra
discussão: a estimativa concreta do alcance desta amplitude -, as
integra sob as normas que são pré condição necessária para a
exclusão de novos setores. Por isso, a legalização do casamento
entre pessoas do mesmo sexo tem gerado um importante debate
teórico-político, em que as críticas não somente provém dos
grupos mais reacionários da sociedade, as igrejas e os partidos
conservadores, mas também de setores da comunidade LGBT que
questionam os valores de exclusividade, monogamia, estabilidade,
convivência, etc. que regem o casamento.
É o paradoxo que atravessa todos os
movimentos sociais logo após os anos 70: a inclusão de direitos
democráticos elementares nos códigos de leis do Estado capitalista,
que implica, como contrapartida, estabelecer a punição com que o
Estado e suas instituições vão direcionar a quem desrespeite esse
direito.
“Existe pouco investimento no que pode transformar a pobreza, a
dependência e precariedade da vida das mulheres, mas existem
numerosas leis penais para proteger as mulheres”, destaca
Larrauri.
As consequências da opressão e a
existência de classes sociais não podem ser abolidas através da
lei. Os novos membros que queiram se juntar ao clube não podem
escapar do exame médico. Irão
ingressar ao mundo de direitos, se ajustando as regras estabelecidas
para seu exercício. A milhões de seres humanos, o novo cartão
de cidadania apenas
permite que se sintam membros do clube, ainda que continue sendo
interditado o uso de suas instalações.
DAS FEMINIST
SEX WAR À
PORNOGRAFIA FEMINISTA
Nos anos 70, o nicho do mercado
pornográfico explodiu no ceio da “revolução sexual”:
expandiu-se os cinemas onde eram projetados somente filmes
pornográficos, a pornografia foi legalizada em vários países, etc.
Rapidamente, o desenvolvimento das filmadoras domésticas permitiu
que a indústria tivesse um crescimento exponencial, não somente
devido ao baixo custo de produção que a nova tecnologia
possibilitou, mas também porque o consumo se deslocou das salas de
cinema aos domicílios particulares, com todos os benefícios de
opções que isso preparava. Isto gerou o que ficou conhecido como
Feminist Sex War
(Guerra dos sexos feminista), um
intenso debate ocorrido, principalmente nos Estados Unidos sobre qual
deveria ser a posição do feminismo em torno da pornografia, que
dividiu o movimento entre quem lutava pela proibição e quem a
defendia, argumentando com o direito à liberdade de expressão.
A
experiência sexual entre uma pessoa e uma coisa
Assim define a pornografia, a
jurista feminista norte-americana Catharine MacKinnon.
Junto com Andrea Dworkin, no debate dos anos 70, argumentaram que a
pornografia é constituinte da subjetividade masculina: através
dela, os homens aprendem a reproduzir a situação social de
subordinação das mulheres. Questionaram, ainda, que nesses filmes,
as mulheres foram estigmatizadas como objetos, ao mesmo tempo em que
foram excluídas da produção e até de seu consumo.
“Na sociedade industrial
contemporânea, a pornografia é uma indústria que produz em massa,
por dinheiro, invasão, acesso, possessão e uso sexual por e para os
homens (...). É um tráfico de mulheres sofisticado tecnologicamente
(...). Nesta perspectiva, a pornografia, com a violação e a
prostituição em que participa, institucionaliza a sexualidade da
supremacia masculina, que funde a erotização do domínio e a
submissão com a interpretação social do masculino e do feminino. O
gênero é sexual. A pornografia constitui o significado dessa
sexualidade. Os homens tratam as mulheres segundo o que veem que são
as mulheres. A pornografia constitui quem são”, observa
MacKinnon.
A pornografia teria um potencial constitutivo: não somente se trata
da reprodução de imagens degradantes das mulheres, mas também da
construção da mulher “como uma coisa a serviço sexual dos
homens”.
Mas assim como os filmes do “super-soldado” Rambo
não são a causa do incremento do gasto militar no governo Reagan,
mas sim, a forma de propaganda com que tenta legitimar essa política
– isso era necessário também, para reparar o olhar das massas ao
exército norte-americano derrotado no Vietnã -, os filmes
pornográficos reproduzem – no âmbito exclusivo do sexo nas
relações heterossexuais – a milenar subordinação social das
mulheres que as democracias capitalistas não se mostraram capazes de
eliminar desde a raiz.
A
ilusão liberal de liberdade
Quem defendeu a legalidade da pornografia, se baseou na
Primeira Emenda da Constitucional dos Estados Unidos que se refere a
liberdade de expressão. De acordo com a interpretação
predominante, garantir a diversidade de expressão na democracia
impediria a imposição de apenas algumas ideias, ou ideias apenas de
determinado grupo social; assegurando a possibilidade de opiniões
divergentes das ideias hegemônicas, seria possível aos cidadãos
escolher e tomar decisões menos coagidas.
As respostas de MacKinnon atingiram dois aspectos
cruciais e controversos. Por um lado, sustentando que a Primeira
Emenda busca proteger as expressões heterodoxas ao discurso
hegemônico, mas que a pornografia “é” o discurso dominante no
que se refere às relações entre os gêneros, que a pornografia tem
o poder de dizer as mulheres quem elas são e o poder de tratá-las
de acordo com essa definição. Mas mais centralmente, afirma que a
pornografia não é expressão, opinião ou discurso, mas sim, é
nitidamente violência sexual contra as mulheres. Por isso, não cabe
à Primeira Emenda, mas à XIV, que exige dos Estados a proteção
igualitária de todas as pessoas perante a lei.
Recentemente, outra voz se levantou
nesse debate. Dentro do ativismo
queer,
algumas mulheres que exercem ou exerceram a prostituição e a
pornografia defenderam sua atividade como escolha, sustentando ainda
que se trata de opções isentas de coerção: “corpo da mulher,
direito da mulher”. No entanto, a posição das feministas
autodenominadas “pró-sexo”, não se limita somente à defesa da
liberdade individual, mas defende também os benefícios que a
pornografia proporcionaria às mulheres, oferecendo uma vasta visão
das possibilidades sexuais, lhes permitindo experimentar sexualmente
sem os riscos “da rua”, etc..
As pró-sexo deram origem ao que se conhece atualmente como o
“pós-pornô”, onde a representação heteronormativa da
sexualidade, hegemônica na indústria pornográfica, é criticada e
combatida mediante a produção de outras representações
heterodoxas das fantasias, dos corpos e das sexualidades. No entanto,
a partir de um ângulo oposto ao de Catharine MacKinnon, o pós-pornô
também parece atribuir à história das sexualidades, uma capacidade
constituinte formidável.
Os estereótipos são sedimentos históricos de
relações sociais estabelecidas com base na primária divisão
sexual do trabalho, o surgimento da propriedade privada e a
consequente necessidade de controlar a sexualidade das mulheres (quer
dizer, assegurar para o proprietário a capacidade reprodutiva das
mulheres que garantiria a sua linhagem). A ideia de que a fantasia
sexual, o desejo, a identidade ou orientação sexual e a própria
prática sexual, por si só tenham o poder de contestar a milenar
relação sexual de opressão masculina heterossexista sobre as
mulheres e pessoas não-heterossexuais, se mostra exageradamente
pretensiosa. Valorizamos seu espírito inconformado contra tanto
puritanismo imposto não só pela direita conservadora, mas também
pela política dos direitos que reconhece, prega e exige um maior
controle do Estado de classe e patriarcal sobre nossos corpos. Mas a
humanidade que está sujeita a disciplina (também sexual) imposta
pela exploração do trabalho e a família baseada no casal
heterossexual monogâmico para garantir a reprodução da força de
trabalho – justificadas e legitimadas pelos discursos religiosos
reproduzidos nos meios de comunicação, etc. – não pode alcançar
uma verdadeira libertação sexual através do exercício individual
de performances sexuais diversas.
Como marxistas, hasteamos as bandeiras democráticas
que nenhuma democracia do mundo pode içar até o topo do mastro:
somos contrários a toda proibição, limitação ou interferência
do Estado e outras instituições contra a pornografia.
Mas não somos espectadores neutros na batalha cultural
que se trava não apenas na indústria pornográfica, mas também nos
meios de comunicação, acerca das representações das mulheres, da
relação entre os gêneros, da sexualidade, etc. Enfrentamos o
machismo e o heterossexismo, revelamos sua origem no fundamento da
sociedade de classes, denunciamos a apropriação que o capitalismo
contemporâneo tem feito dessas velhas relações de subordinação e
opressão para fortalecer seu poder na exploração de milhões de
seres humanos. Estamos abertamente na luta de classes contra as redes
de tráfico e todas as formas de violência contra as mulheres. E,
acima de tudo, lutamos por uma sociedade de produtores livres, onde a
sexualidade humana se expanda em suas infinitas possibilidades, não
só em vínculos sexo-afetivos, mas também nas mais diversas formas
de relacionamento entre as pessoas, a arte e a cultura de massas –
incluindo a pornografia -, liberada das coações físicas,
econômicas, sociais e culturais que hoje a restringem.
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DO
ANTIGO LENOCÍNIO
À ORGANIZAÇÃO SINDICAL CONTEMPORÂNEA
Apesar de ser considerado o “ofício
mais antigo do mundo”, as características atuais da prostituição
diferem enormemente do lenocínio religioso exercido na civilização
Suméria ou o que praticava as hetairas
gregas.
Contra toda a mistificação social da prostituição, Engels já a
denunciava como uma instituição social que “mantém a antiga
liberdade sexual... em proveito dos homens”. Em seguida, acrescenta
que ainda que a prostituição seja reprovada socialmente, a
reprovação “nunca se dirige aos homens que a praticam, mas
somente às mulheres; que são desprezadas e rechaçadas, o que
afirma mais uma vez como lei fundamental da sociedade, a supremacia
absoluta do homem sobre o sexo feminino”.
Para Engels, a prostituição surge em contrapartida à aparição da
família baseada no matrimônio monogâmico. “Tudo o que a
civilização produz é também duplo, ambíguo, equívoco,
contraditório; por um lado, a monogamia, e por outro, o heterismo,
incluindo a sua forma extrema, a prostituição”.
Essas mesmas características se mantém por de
milhares de anos. Contudo, considerar a prostituição como uma
instituição igual a si mesma, nas distintas sociedades, impede que
vejamos quais são os vínculos imbricados que mantidos com o
capitalismo – modo de produção que alterou drasticamente as
relações sexo afetivas, o matrimônio, a família, etc. – e que
lhe confere novas configurações, além de abrir novas questões e
debates teóricos e políticos.
Revolução
industrial e moral vitoriana
Foi somente no início do
capitalismo e, mais precisamente, no período de máximo
desenvolvimento da “revolução industrial”, que a prostituição
adquiriu as características modernas. Em meados do século XIX na
Grã Bretanha, pela primeira vez na história a população urbana
era maior que a rural. A superpopulação de pobres em Londres dava
lugar a novos fenômenos e formas de vida: enquanto a rainha Vitória
ordenava alargar as toalhas para que os pés das mesas não fizessem
os homens lembrarem das pernas femininas, nos bairros do Leste os
bordéis se multiplicavam e as mulheres eram prostituídas nas ruas
da próspera metrópole.
Analistas de diferentes ideologias
concordam que, durante essa época, a pobreza é uma das causas mais
importantes que empurram as mulheres para a prostituição. Mas, como
esclarece Bebel, “alguns dos que se ocupam dessa questão começam
a perceber que a triste situação social sob a qual sofrem várias
mulheres poderia ser a principal causa de tantas delas venderem seus
corpos; mas este pensamento não avança até a conclusão de que,
portanto, é necessário criar outras condições sociais”.
Neoliberalismo
e indústria do sexo
As mais recentes décadas de
restauração capitalista deram uma dimensão incomum à
prostituição. Para Sheila Jeffreys, a convergência da tolerância
da “liberdade sexual” e a ideologia do livre mercado, fizeram a
prostituição ser reconstruída “como ‘trabalho’ legítimo que
funciona como base da indústria do sexo, tanto a nível nacional
quanto internacional”.
O objetivo de sua investigação – com dados e denúncias de
distintos lugares do mundo – é demonstrar que a prática da
prostituição se transformou em um dos negócios – legal e ilegal
– mais rentáveis no mundo. Além disso, tenta argumentar que a
prostituição forçada de mulheres e meninas sequestradas por redes
de tráfico é a base de uma indústria mais ampla que abarca desde
os clubes de strip-tease,
o turismo sexual, a pornografia, até o “fornecimento” de
mulheres para as bases militares ou “matrimônios” combinados
mediante contratos de compra e venda.
Além de suas próprias avaliações
a respeito, são muitos os estudos que sustentam suas conclusões
sobre o aumento sem precedentes do “negócio capitalista” que se
tornou a prostituição e a ligação com as redes de tráfico de
pessoas junto a indústria pornográfica, o turismo sexual, etc.
Vejamos alguns dados significativos: segundo Fondation
Scelles, mais de 40
milhões de pessoas são prostituídas no mundo inteiro; a ONU estima
que o número de vítimas de tráfico, a nível mundial, é de 2
milhões e meio de pessoas, dos quais 85% são destinados à
exploração sexual.
Os destinos turísticos da
prostituição – que foram promovidos nos anos 80 e 90 – foram,
em princípio, aqueles países vizinhos aos conflitos bélicos aonde
descansavam as tropas norte-americanas durante as guerras da Coréia
e Vietnã (como Filipinas e Tailândia). A retirada das tropas deixou
uma “capacidade ociosa” em termos de indústria do sexo: milhares
de mulheres que serviram sexualmente aos soldados estrangeiros,
bordéis, bares de strip-tease
e outros negócios que precisavam de novos clientes. O turismo sexual
ocupou o lugar dos fuzileiros
navais
norte-americanos. Os cafetões do sudeste asiático encontraram a
possibilidade não somente de comercializar as mulheres, mas também
de vender o estereótipo da fêmea submissa. Jeffreys atribui ao fato
de que “permite aos homens de países em que as mulheres estão
avançando até a igualdade (...) comprar a subordinação da mulher
de outros países, graças ao seu maior poder aquisitivo”.
Tráfico
de mulheres e trabalho sexual: abolição ou regulamentação?
De acordo com um relatório de 2006
do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Delito, 87% das
vítimas de tráfico foram destinadas a exploração sexual. Algumas
feministas denunciam que o tráfico está se tornando o principal
modo de abastecimento para a indústria mundial do sexo, fornecendo
mulheres forçadas a “trabalhar por dívidas” na prostituição
de rua ou em prostíbulos, em clubes de strippers,
na pornografia, etc.
Mas enquanto isso acontece – transformando o grupo de
mulheres que se prostituem sem ser exploradas por um cafetão, em
algo cada vez mais minoritário -, a Organização Internacional do
Trabalho, grandes organizações internacionais pelos direitos civis
e distintos Estados, impulsionam a sindicalização das mulheres em
situação de prostituição. No feminismo, a brutal contradição
entre a proliferação das redes de tráfico, o crescente número de
mulheres desaparecidas e/ou sequestradas e, por outro lado, a forte
pressão internacional pela legalização da prostituição, acendeu
novamente o silenciado debate entre abolicionistas e regulacionistas
do século XIX.
Um extenso debate – impossível de
abordar neste espaço -, em que o regulacionismo propõe que o Estado
legalize a prostituição e, portanto, que se regulamente a
instalação de prostíbulos, as formas de exploração das mulheres,
os controles sanitários e, por outro lado, o abolicionismo, que
considera a prostituição como uma forma de violência contra as
mulheres, combate o proxenetismo
e luta por bani-lo. Este debate, atualmente, se expressa como uma
tendência que defende a prostituição como trabalho e, portanto,
seu enquadramento como qualquer outro ofício, com direito a
sindicalização e, por outro lado, uma corrente que considera
possível que a sociedade descarte o consumo da prostituição – o
que conduziria a sua desaparição -, mediante o fortalecimento do
poder punitivo do Estado voltado contra o cliente.
As regulacionistas defendem que os danos que ocasiona a
estigmatização social da prostituição é mais daninho que o que
as abolicionistas veem como as pesadas consequências psicológicas
de seu exercício. As abolicionistas questionam as regulacionistas
sobre a estreita linha que separa o sindicato como uma organização
para proteger os direitos das mulheres de uma nova organização
proxeneta. Contudo, tanto umas quanto outras colocam no mesmo Estado
capitalista que legitima e reproduz a milenar opressão às mulheres,
a responsabilidade de regular a vida das prostitutas ou a
responsabilidade de castigar os consumidores.
Longe do moralismo, o marxismo reconhece que a
prostituição é inseparável da sociedade de classes e, desse modo,
é inseparável do capitalismo. Mas reconhecer que somente acabando
com todas as formas de exploração e opressão, poderemos acabar com
a prostituição, não é razão para não defender os direitos das
pessoas que estão nessa situação – dentre as quais, as mulheres
são maioria absoluta -, a sua auto-organização, livre da
interferência de proxenetas (sejam cafetões ou empresários) e do
Estado (seja regulacionista ou punitivo). Combatemos a
estigmatização, a perseguição e marginalização social, ao mesmo
tempo, em que denunciamos e enfrentamos a repressão policial à
prostituição. Denunciamos a cumplicidade das forças repressivas do
Estado, seus funcionários políticos, a justiça e empresários
poderosos no funcionamento e na impunidade com que operam nas redes
de tráfico. Contra a utopia abolicionista, acompanhamos e promovemos
a luta de exigir do Estado capitalista e de seus governos a garantia
de um trabalho digno, acesso a saúde, a educação, moradia e um
salário que atenda às necessidades básicas das pessoas. Mas
fazemos isso, tendo em no horizonte, uma sociedade cujas horas para o
ócio sejam abundantes e as insatisfações com as necessidades mais
básicas sejam uma vaga lembrança da pré-história humana.