Por Paula Berbert, graduada em Ciências Sociais
pela Unicamp. Estudante da Usp, professora da
rede estadual paulista e militante do Pão e Rosas.
Elas são as primeiras pessoas para as quais dou ‘bom dia’, negras, uniforme azul que as diferenciam de todos os outros funcionários da escola estadual onde trabalho. “Tão cedo no batente?” – pergunto às 6h40. “É claro, professora. Tudo precisa estar em ordem pra quando vocês chegarem, não é?” – responde uma das duas terceirizadas que limpam uma escola que atende mais de 800 alunos. Entram todos os dias às 5h da manhã, saem às 16h, param meia hora para o almoço que trazem de casa, zanzeam com vassouras e baldes nas mãos. Sempre juntas, a única coisa que lhes dá identidade é as luvas que usam, que têm seu nome escrito. Ali ninguém fala com elas, nem os alunos, nem os demais funcionários e professores.
Três dias antes de escrever essa resenha tive uma oportunidade de conversar com elas de fato. Numa janela entre duas aulas, folheava um jornal quando entraram na sala de professores. “Precisamos limpar, você se incomoda?” – perguntou com simplicidade. “Claro que não! Aliás, sempre falo com você, mas não sei seu nome”. Começamos a conversar. Trabalham na escola há quatro anos, ali a terceirização começou a partir da cooperativa do bairro, que alistava mulheres para trabalhar na limpeza de escolas e organismos públicos da vizinhança. “Sabe, professora, é sempre com o pessoal daqui de perto, porque eles não pagam vale transporte”. Logo foram transferidas para empresas, com as quais a diretora negocia para mantê-las ali. Assim que começaram a trabalhar eram sete funcionários que cuidavam da limpeza da escola, que funciona nos três períodos, com mais 50 turmas, hoje são apenas duas trabalhadoras. Pergunto se houve aumento do salário, já que o trabalho aumentou mais de três vezes. “Não, professora, eles vão aumentando o trabalho e a gente vai dando conta. Tem que fazer o serviço todo, né?”. Falavam também que terminavam o dia exaustas, com pernas e braços doendo, depois era limpar a casa, fazer o jantar e preparar a própria marmita e também a do companheiro . Tão cansadas que nem a novela dava para ver direito. O salário às vezes atrasa, benefícios não têm nenhum. Eu ouvia aquelas mulheres e me lembrava de outra que conheço, tão parecida com elas – Silvana, resolvi falar do livro. “Vou trazer um presente pra vocês na segunda-feira ...”. “O que, professora? Não precisa se incomodar com a gente!”. “É um livro que fala sobre vocês, sobre mulheres terceirizadas, que dão duro, trabalham limpando um lugar, à noite chegam e casa e trabalham mais ... Acho que vocês vão gostar!”. Mostro a elas o piloto do livro, que estava na minha mochila. Na capa duas terceirizadas, usando uniformes escuros e com vassouras na mão, uma diz para outra: “Olha, podia ser a gente!”.
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A terceirização faz parte da nossa vida cotidiana, na escola onde trabalho, no metrô que pego para chegar lá, que começa a ser privatizado e terceirizado, na limpeza do meu local de estudo, a Universidade de São Paulo, e em partes dos restaurantes desta universidade, na entrega do livro que lia horas atrás e da pizza que jantei ontem à noite. E como parte daquilo que é corriqueiro, muitas vezes passa por nós de maneira natural e irrefletida. O livro que apresento aqui, A precarização tem rosto de mulher, organizado por Diana Assunção, diretora do Sindicato de Trabalhadores da Usp (Sintusp), membro da Secretaria de Mulheres deste sindicato e fundadora do grupo de mulheres Pão e Rosas, nos mostra essa triste e injusta realidade, e narra uma luta importantíssima, travada em 2005 pelas trabalhadoras e trabalhadores terceirizados da Dima, empresa contratada para limpeza da Usp. Este é um livro militante, escrito de maneira simples e direta, acessível para jovens, estudantes, ativistas, militantes, estudiosos do tema da precarização e, especialmente, para trabalhadores. A partir de entrevistas com uma das principais protagonistas do conflito, Silvana, trabalhadora terceirizada, negra, mãe de família, a quem me referia, reconstruímos a história desta greve, em que os terceirizados se sublevaram contra as péssimas condições de trabalho, contra os assédios morais que sofriam das encarregadas, que chegavam a chamá-los de “escravos”, as humilhações da patronal e contra os atrasos do baixíssimo salário.
Logo que começaram a se organizar, os trabalhadores terceirizados da Dima enfrentaram muitas dificuldades. Estavam divididos em unidades diferentes da Usp, não podiam contar com o auxílio do seu sindicato, o SIEMACO (Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços de Asseio e Conservação e Limpeza urbana de São Paulo), constantemente sofriam ameaças de demissão e transferência para locais de trabalho longe da região do Butantã. As dificuldades eram muitas e a solução para elas ficou mais clara quando a organização dos terceirizados encontrou aliados, estudantes trotskistas da Usp, organizados no movimento A Plenos Pulmões, e trabalhadores efetivos da universidade e seu sindicato, o Sintusp. Exibições de filmes foram organizados por estes estudantes, dentre eles A greve, de Sergei Eisenstein, quando uma trabalhadora disse: “Tudo o que queremos fazer está nesse filme!”. Passaram eleger representantes dos trabalhadores terceirizados de cada unidade para compor o que eles chamavam de linha de frente. Eles discutiam semanalmente, debatiam sobre os problemas que aconteciam em cada local, pensando em soluções unitárias e coletivas. A luta contra a patronal se expandia, ganhava contornos mais claros.
Este livro discute as grandes questões sociais e políticas das últimas décadas a partir de um pequeno exemplo. Nos últimos anos vimos o avanço neoliberal sobre a classe trabalhadora, retirando direitos sociais historicamente conquistados, dividindo-a entre efetivos, terceirizados, temporários, sub-contratados, rebaixando a qualidade de vida de milhões. No plano ideológico, a academia e a ideologia dominante produziram rios de tintas sobre o fim da história e sobre o deslocamento da centralidade operária enquanto sujeito de transformação social. Ouvimos todos os dias que não se pode fazer muito contra o atual estado de coisas e que devemos nos conformar nos dedicando a projetos pessoais e ao nosso desenvolvimento individual. Mas a pequena luta das trabalhadoras e trabalhadores terceirizados da Dima questiona tudo isso. A auto-organização operária se mostrou viável, a necessidade de recomposição da unidade das fileiras da classe se mostrou fundamental e possível, a partir da localização do Sintusp neste conflito. Os avanços da subjetividade dos trabalhadores em luta se concretizou na vida de Silvana, que entendeu ali que se ela lutava contra o patrão da Dima, não podia ter “um patrão em casa”. Com dados sobre a trajetória da terceirização da Usp, o livro mostra que o processo mundial de precarização do trabalho tem sim rosto de mulher, e mostra que a sua superação também tem.
Contando com a apresentação das professoras Claudia Mazzei, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Maria Beatriz Costa Abramides, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, esta publicação discute o processo da precarização, e da terceirização como uma de suas facetas, enquanto um processo mundial. A breve explanação sobre este tema em seu prólogo ganha carne nos artigos dos anexos. Um deles sobre a vida e luta de Konstantina Kuneva, trabalhadora terceirizada que sofreu um brutal atentado da patronal por sua organização política na Grécia em 2008, abalada pelas primeiras conseqüências da crise capitalista e também pelas primeiras respostas das massas. O outro é uma entrevista com duas dirigentes operárias do novo sindicalismo de base na Argentina, em que Catalina Balaguer e Lorena Gentile relatam suas lutas em defesa dos direitos das trabalhadoras e no combate contra a terceirização.
A precarização tem rosto de mulher é parte da coleção Iskra Mulher, que já publicou outros títulos, como Pão e Rosas – identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo e Lutadoras – histórias de mulheres que fizeram história, e foi organizado por militantes da Liga Estratégia Revolucionária (LER-QI) e do grupo latino-americano Pão e Rosas, que organiza mulheres trabalhadoras, efetivas e terceirizadas, estudantes e jovens também na Argentina, Chile e México. Esperamos com essa publicação aportar para a reflexão, estudo, organização e luta daqueles que não naturalizam a divisão e exploração da classe trabalhadora, e que este livro seja um instrumento de combate à terceirização, que como diz a campanha de nosso grupo de mulheres, “escraviza, humilha e divide”.
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Lançamos o livro no momento histórico em que vemos uma nova “primavera dos povos” na Tunísia, Líbia e Egito, onde as massas se levantam contra governos ditatoriais e pró-imperialistas que durante décadas oprimiram e espoliaram os trabalhadores e o povo pobre, e saem às ruas exigindo a queda destes ditadores e reivindicando também melhorias nas condições de vida, aumento de salários e liberdade de organização política. Estas mobilizações foram antecedidas por conflitos importantes na Grécia, Espanha e França, onde a classe trabalhadora recorreu aos seus métodos históricos de luta como piquetes, paralisações, manifestações de rua e greves gerais para combater as conseqüências da crise econômica, que se manifestam nas políticas governamentais destes Estados endividados, que têm por objetivo descarregar em suas costas o custo da crise capitalista. Vemos essas respostas iniciais das massas questionar o triunfalismo da burguesia, que imperou nas subjetividades dos trabalhadores e da juventude. Ao contrário dos postulados de Fukuyama, a história continua e as massas mobilizadas demonstram nas ruas a sua força.
Por outro lado, no Brasil, onde os “tempos” da crise são mediados por um crescimento econômico baseado na alta dos preços das commodities e no consumo do mercado interno, ainda prima uma subjetividade gradualista e passiva. Apesar do crescimento vertiginoso dos postos de trabalho precário, das enchentes que assolam a população pobre nas favelas, morros e periferias, da violência policial contra a população negra, parte importante do povo tem ilusão de que a eleição da primeira presidenta, Dilma, pode solucionar os problemas que ainda afetam o país. Inclusive um setor importante do movimento de mulheres, que naturalizou a posição escandalosa da então candidata, usando a bandeira histórica da legalização do aborto como moeda de troca nas eleições, para ganhar o apoio de setores católicos e evangélicos.
Com esta publicação também queremos dialogar com essa realidade, em que vemos a crise capitalista se desenvolver e ganhar concretudes desiguais e combinadas no globo. É preciso que nos apropriemos das lutas, ainda que pequenas, que a classe trabalhadora começa a travar no Brasil. Essa é a forma de não partirmos do zero e aprendermos com as lições das vitórias e também das derrotas da classe. Por isso convidamos todas e todos a lerem o livro A precarização tem rosto de mulher e difundi-lo de forma militante, como um instrumento que sirva para fortalecer aqueles que lutam contra este sistema de exploração e opressão.
* Resenha publicada na Revista Contra Corrente - revista Marxista de Teoria, Política e História Contemporânea, Nº 5.